Quem está fechando as Igrejas é a extrema direita que usa e abusa da fé das pessoas para alcançar o poder político ou nele permanecer. Iludem-se as pessoas que acham que as palavras de qualquer líder religioso, padre ou pastor, tem direito de verdade e justificativa evangélica. O ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, alertou há poucos dias que os evangélicos estão sendo “ludibriados e enganados pela lengalenga evangélica bolsonarista”. Segundo ele, “o aumento do evangelismo fundamentalista de origem norte-americana no Brasil está provocando um retrocesso educacional e cultural, além de se identificar com a extrema-direita, dando origem a um discurso antidemocrático e golpista de seus líderes”.
Estamos vendo um crescimento cada vez maior do uso da Bíblia com interpretações que fazem tremer os grandes reformadores do passado, Lutero e Calvino, por parte de pessoas que pouco conhecem de teologia, e com um povo que se deleita com as pregações do tipo show que pouco tem de evangélico, ou nada de cristão, pois pregam o ódio, a mentira, a intolerância.
A transição religiosa que está acontecendo de maneira intensa em nossa sociedade foi contaminada pela Direita Cristã que nasceu nos Estados Unidos em 1935 reunindo empresários e industriais em torno do governo norte-americano tomando por base um cristianismo fundamentalista e sem fundamento. Nasce aí a Direita Cristã em torno de um encontro chamado “café com oração” para salvar a economia americana. Não era um grupo que estava preocupado com a fome que crescia no país, com o desemprego, mas com a salvação da economia que matava e mata até hoje.
Esse movimento chega nessa eleição achando-se no direito de ofender Bispos e Padres, desrespeitar lugares sagrados, e até ofender o Papa Francisco. Dom Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo foi agredido e chamado de comunista por usar roupa vermelha. Assim ele se expressa: “A fé em Deus permanece depois das eleições; assim, os valores morais, a justiça, a fraternidade, a amizade, a família…vale a pena colocar tudo isso em risco no caldo da briga política? Tempos estranhos esses nossos! Conheço a história. Às vezes, parece-me reviver os tempos de ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nessa hora”.
Não são apenas lideranças que ocupam cargos ou representações na esfera federal. Trata-se de um conjunto de pessoas que está assumindo lugares de poder na sociedade marcando uma atuação historicamente conservadora, e do ponto de vista católico ultrapassada, pré-vaticano II. Quem contribuiu de maneira significativa para que isso acontecesse beneficiando o poder executivo com o apoio ao Presidente da República como apoio nos atores do congresso nacional foram parcelas significativas das igrejas cristãs. As questões religiosas tornaram-se pauta política de maneira cada vez mais forte. Nota-se desde 2020 o crescimento do poder religioso pentecostal e neopentecostal presente tanto nas denominações evangélicas como em certos círculos católicos, e essa postura está em sintonia com um modelo de Estado que estrutura uma “economia que mata”, como nos diz o Papa Francisco.
Tornam-se urgentes as discussões acerca das relações entre religião e política, pois chega-se ao ponto de o poder religioso buscar influenciar inclusive a composição dos conselhos tutelares. Certas batalhas eleitorais não passam de batalhas religiosas. Ao mesmo tempo, percebe-se como as pautas morais pouco ou nada tem a ver com a doutrina moral da Igreja Católica ou cristã, mas são elementos aglutinadores de atores políticos conservadores. É perceptível a mudança de foco político dos últimos anos, passando dos projetos de governo em torno de um Estado democrático para questões morais e religiosas. Ganha-se ou perde-se uma eleição de acordo com o posicionamento do candidato em relação à determinada pauta moral conservadora, produto de uma interpretação fundamentalista tanto da Bíblia como da Doutrina Social da Igreja.
O que sustenta teologicamente a tendência fundamentalista pentecostal é a Teologia da Prosperidade que defende que a pobreza e a exclusão social são efeitos do pecado e da culpa individual. Por isso é preciso aceitar Jesus. Somente assim se alcançaria a libertação das “forças das trevas”. O segundo pilar que sustenta o fundamentalismo pentecostal é a Teologia do Domínio, que recusa a laicidade do Estado. Defende que o Estado deve ser governado por cristãos, fieis da Bíblia interpretada literalmente. Nesse sentido, cresce a presença da religião na esfera social com eventos religiosos, praças abençoadas, placas religiosas, armas abençoadas, aporte financeiro a eventos religiosos de algumas Igrejas estruturando assim uma centralidade da organização social, exercício do domínio e da ordem. Jamais de salvação conforme se lê nos Evangelhos. Forma-se assim uma grande cristandade. O que ela tem de cristã além do nome?
Nessa relação entre religião e política enraizada no fundamentalismo religioso cresce o caminho da violência presente numa agressiva militância digital fortalecida pela geração de fake News; cresce a violência em torno de um racismo estrutural que inferioriza a maioria da população brasileira (“não há pobres”) instrumentalizada com mecanismos permanentes de dominação; cresce uma violência estética inspirada no fascismo, no nazismo, no integralismo; e cresce uma violência sustentada por uma agenda moral ultraconservadora e projetos político/religiosos comuns, inserindo-se na engrenagem social.
Os cinco Bispos da CNBB, Regional Leste 3, publicaram uma Carta Pastoral lamentando profundamente o uso da mentira como arma política e método para arregimentar apoiadores e seguidores e convoca para a leitura da Doutrina Social da Igreja que afirma que “os homens estão obrigados de modo particular a tender continuamente à verdade, a respeitá-la e a testemunhá-la responsavelmente”. Mais lamentável ainda é encontrar católicos, inclusive ministros ordenados, servindo à divulgação da mentira nos mais variados espaços.
Ainda em Roma os Bispos do Leste 3 enviaram uma Carta ao povo capixaba alertando sobre as mentiras em torno do fechamento de Igrejas, do medo, do ódio e da violência política que são disseminadas pelas ruas e pelas mídias sociais que não podem calar a verdade do empobrecimento e da fome que a realidade nos mostra, orientando, assim, o agir e o voto dos cristãos. Não podemos admitir que o nosso Estado retroceda na garantia de direitos, na confiança e seriedade das instituições, no combate a toda forma de violência que provoca tanto prejuízo, dor e sofrimento ao povo, principalmente aos pequenos e empobrecidos”.
A acrescentam ainda mais: “Quando o voto é iluminado pela fé e a razão e não pela mentira e pelo medo, realiza-se um pacto com os governantes, pelo nosso futuro e pelo futuro de quem amamos, como uma manifestação de nossa vontade de viver num Estado que gera e faz a vida crescer. A verdadeira cidadania cristã exige diálogo, respeito, solidariedade e repúdio a toda e qualquer forma de violência, que fere a vida e a dignidade das pessoas”.
A manipulação da fé está provocando um grande estrago na vida comunitária, familiar, social, com muitas divisões e conflitos. Ao mesmo tempo, contata-se um esvaziamento das Igrejas, especialmente dos jovens, que lutam por ideias de paz e liberdade. Há bastante tempo que estamos alertando para o esvaziamento das comunidades, especialmente dos jovens. Estão formando uma nova categoria religiosa, os desigrejados.
A CNBB alertava nas vésperas da festa de Nossa Senhora Aparecida desse ano sobre a “intensificação da exploração da fé e da religião como caminho para angariar votos”. O que estamos vendo é um processo de corrupção da fé em larga escala por lideranças religiosas a serviço da máquina política. Quando o altar e o púlpito se confundem com o palanque o povo vai sendo impedido de olhar o mundo com os olhos da fé, ficando cego, sendo levado num verdadeiro cabresto religioso. Configura-se nos tempos atuais uma transmutação da Palavra de Deus, que é instrumentalizada a serviço dos coronéis da política.
Essa manipulação religiosa, conforme os Bispos, “sempre desvirtua os valores do Evangelho e tiro o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil. É fundamental um compromisso autêntico com a verdade e com o Evangelho”. A “melhor política” é aquela iluminada pelos valores do Evangelho, iluminada pela luz da fé.
Na Encíclica Lumen Fidei se diz que a Igreja é a mãe de nossa fé, pois cremos naquilo que nos foi transmitido, pois vem de longe, dos apóstolos. Por isso cremos com quem creu primeiro. A transmissão apostólica está presente na autoridade dos Bispos que mantém a unidade em torno do Papa. Por esse motivo, quando o Magistério da Igreja nos apresenta Cartas pastorais, cartas de orientação, mensagens ao povo, é um sinal do caminho a ser seguido. O Papa Francisco disse há tempos atrás que “quem não segue o Concílio Vaticano II não está na Igreja”. Os tempos atuais estão jogando muita poluição, pó preto, na vida de cristãos e católicos. Uma fé poluída, corrompida, é a perdição das pessoas.
Por fim, gostaria de dizer que quando a pessoa não tem certeza do caminho a seguir, da atitude a tomar, na vida de fé aconselha-se a seguir a voz do pastor, aquele do Evangelho, o bom pastor. Quem não reconhece essa voz tenderá a se perder no engodo das promessas e interesses escusos que somente instrumentalizam a fé e a religião. Concluindo com o Papa Francisco sobre o caminho a seguir nesse momento tão desafiador da história brasileira: “As religiões não podem ser usadas para a guerra. Somente a paz é santa e ninguém usa o nome de Deus para abençoar o terror e a violência”.
Edebrande Cavalieri