A violência doméstica: raízes

6 agosto, 2021

Uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos relata ter sofrido algum tipo de violência doméstica, durante a pandemia de Covid-19 (2019/2021) segundo recente levantamento do Datafolha (06/2021) . A pesquisa  mostrou que  caiu a violência na rua (de 29% para 19%),  aumentaram as agressões dentro de casa, (passando de 42% para 48,8%) e cresceu a participação de companheiros, namorados e ex-parceiros nas agressões (de 39% para 43,5%). As  maiores vítimas de violência doméstica (65,7%) são as mulheres divorciadas e as solteiras. 87,8% têm entre 16 e 44 anos, sendo a idade inversamente proporcional à incidência de violência, ou seja quanto mais jovens maior a incidência: de 16 a 24 anos: 35,20%; de 25 a 34 anos 28,60%; de 35 a 44 anos 24,40%). As mulheres que sofreram violência doméstica estão entre as que mais perderam renda e emprego na pandemia, e quando se analisa a violência contra mulheres acima de 50 anos, por exemplo, cresce a participação de filhos e enteados nas agressões. Os pais também estão representados neste quadro de aumento de violência doméstica, crescendo 12,1% neste período.

A pandemia de fato impactou essas famílias que não conseguiram mais escapar de seus problemas nas relações pessoais. As dificuldades financeiras e a falta dos escapes usuais das pessoas em tempos de stress foram algumas das variáveis que pesaram e, em parte, explicam o aumento desta violência.

O que está acontecendo nas nossas famílias? Estamos mais agressivos ou menos tolerantes?  Vamos tentar entender um pouco mais.

Quem são estas mulheres? Elas nasceram após a geração das queimas de sutiãs nas praças, dos anticoncepcionais e da libertação feminina. Foram criadas por mães que lhes ensinavam: “não deixe nenhum homem mandar em você” e “trabalha para ter seu dinheiro e não depender de homem”. Essas mulheres, empoderadas desde o berço, não aceitam o lugar de submissão de suas mães, e convivem com homens criados, inclusive, pelas mesmas mulheres, que ensinam aos filhos a “não deixar mulher mandar em você”. Evidentemente, pelas nossas incoerências sociais,  o conflito foi e continua sendo inevitável.

Quem são  estes homens? Em contrapartida os homens brasileiros sempre foram criados para serem o “chefe” de suas famílias, a serem servidos e não a servir, a serem fortes, viris, corajosos, não lhe sendo permitido o medo, a insegurança,  choro ou qualquer fragilidade: “coisas de mulher”. Qualquer desvio do perfil machão era logo classificado de “maricas”( para usar um termo suave)!  Ser o chefe na familia, repetia  a visão secular de homem autoritário.

Durante as grandes guerras, as mulheres foram sendo chamadas a ocupar espaços profissionais e depois da segunda guerra, o ambiente nas empresas também foi sendo gradativamente modificado assim como o perfil dos colaboradores e de chefias. Surgiram novas tecnologias e com as novas mídias, era necessário conhecimento e não força, diálogo e não chicotes. As pessoas agora  eram “pagas para pensar” . Antes, o grande jargão do chefe autocrático era o oposto, “você não é pago para pensar”.

No Brasil, como no mundo todo, o índice de educação formal entre as mulheres é maior. Elas foram ganhando espaços também por terem salários no mínimo um terço a menos que os homens, além de serem acostumadas a multitarefas e a jornadas ampliadas. Aos poucos o estilo de gestão das empresas foi passando do imaginário masculino, focado no poder autocrático, para o imaginário feminino, compartilhado e participativo. No trabalho, o estilo autocrático (típica do estilo “machão”) ainda resistiu no topo das organizações, mas perdeu espaços para o estilo mais “soft” privilegiando as mulheres em muitas áreas. Os homens que não se adequaram às novas exigências, foram sendo demitidos e mesmo quando reabsorvidos pelo mercado, muitos o foram em funções mais operacionais ou subempregos e o estresse e as frustrações vivenciadas de uma forma ou outra. Esses homens tiverem que viver a transformação desse processo, da nova ética, imposta aos poucos e sem retorno. O índice de desemprego entre os homens subiu muito. As mulheres, com menores salários, foram chamadas a enfrentar os desafios  de mundo agora tão competitivo nos preços.

Com as grandes transformações culturais o perfil “machão”, muito criticado no  espaço público, ainda sobrevive no espaço do íntimo, nos lares. DaMatta, conhecido antropólogo brasileiro, nos mostra com muito primor que neste espaço íntimo, as pessoas se fundamentam em suas próprias regras. Desta forma, em suas casas, esses homens encontram o espaço de poder que já não encontram externamente. Os homens que tinham, no espaço “da casa”, sua ilha de poder e alicerce da sua identidade foram sendo confrontados por suas companheiras, que conquistaram a independência financeira e foram se libertando das relações autoritárias. Não conseguindo lidar com os sentimentos de fracasso e de frustração, alguns tentam abalar a autoconfiança da mulher, outros ameaçam e partem para a agressão. Não sabem lidar com as emoções, pois nossa sociedade nunca lhes permitiu outro caminho. Culturalmente no Brasil o papel masculino sempre foi estabelecido valorizando a imposição, o poder, a raiva e a briga.

A rejeição pública que esse homem vive  quando a sua mulher pede a separação/divórcio é um confrontar-se com a sua masculinidade, com a sua impotência. Ao serem abandonados  por elas, alguns não suportam a humilhação. Matam a mulher e muitas vezes se matam.

Nossa sociedade tem que se dar conta de suas responsabilidades neste cenário. É até cruel ir em busca de culpados. São  as nossas incoerências que estão nesta base. Precisamos encarar as mesmas, para transformar essa realidade.  O feminicídio é resultado de nossa dificuldade em rever e preparar as novas e as antigas gerações para os novos parâmetros.  As mudanças no imaginário demoram, não acontecem porque as  pessoas passaram a conceituar que um jeito de ser não é mais desejado. Novos comportamentos  precisam  ser internalizados por homens, mulheres, pais e mães Todos. A escola também é vital nesse movimento. Precisa ajudar nesse processo, de forma mais sistêmica  e sair do simplesmente ser instrumento de desequilíbrio destas forças.

O problema está “estourando” muito pelas  frustrações de homens que não  conseguem encontrar mais seus espaços.  Mas a mudança desta realidade não é apenas empoderar a mulher e desvalorizar o homem “padrão”, que não é uma roupa que está fora de moda.  Falta refletirmos em modos de transformar a realidade, modos motivar, de ensinar, de apreender e internalizar o direito de todos ao respeito e ao amor como nos ensinou Jesus e, assim, libertando os casais deste modelo de relacionamento pautado pelo poder e não pelo amor.

Vania Reis

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