O QUE É DISCERNIMENTO?

3 agosto, 2022

No retorno da viagem ao Canadá, o Papa Francisco concedeu uma entrevista aos jornalistas e uma das questões que lhe fizeram foi a respeito da sua posição como um papa jesuíta. Disse que sua vida foi marcada pelo discernimento jesuítico, uma espécie de chave vocacional. Disse também que Santo Inácio de Loyola teve na escola do discernimento o caminho para a conversão. E sintetiza essa vocação como homem capaz de discernir situações, discernir a própria consciência, discernir as decisões a serem tomadas. Isso é um pouco a espiritualidade dos jesuítas e os exercícios espirituais são um espaço na escola do discernimento.

Santo Inácio redigiu em 1522 o roteiro desses exercícios espirituais definido por ele mesmo como “qualquer modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal ou mentalmente e outras atividades espirituais”. Hoje são muito difundidos no mundo todo tanto por orientadores espirituais como pelos Centros de Espiritualidade Inaciana. No Brasil é bem conhecido o Centro de Espiritualidade de Itaici (Indaiatuba – SP), com a organização de diversos retiros ao longo do ano, abertos a todo o povo de Deus que deseja fazer esse caminho de discernimento.

Como estamos iniciando o mês das vocações, especialmente a vocação sacerdotal, o tema do discernimento torna-se um grande balizador do caminho tanto dos vocacionados como de outros possíveis candidatos ao ministério ordenado. Ao mesmo tempo, esse tema tem ecoado bastante nos últimos tempos, nos documentos da Igreja e nas ações pastorais. Portanto, o discernimento completa e aprofunda o método ver-julgar-agir que sempre falávamos após o Concílio Vaticano II.

Num mundo marcado por tantas contradições, com luzes e sombras, confuso, as pessoas encontram-se perdidas e sem uma espécie de bússola que as guie, sem saber qual direção dar para a própria vida. Então as coisas perdem sentido, tudo se torna banal, descartável, mutável, líquido. Sem um rumo, ficamos à mercê de gurus ideológicos, ou do espírito de manada indo na onda. A prática do discernimento diário torna-se essencial para nos fortalecer, nos guiar, caminhando de maneira segura e feliz.

Santo Inácio de Loyola não foi apenas o fundador da Companhia de Jesus, mas desde o século XVI é um dos grandes mestres para toda a Igreja em relação ao carisma do discernimento. A espiritualidade inaciana é uma das principais escolas de formação no acompanhamento espiritual. O Sínodo de 2018 dizia que os traços fundamentais do discernimento são a escuta e o reconhecimento da iniciativa divina, uma experiência pessoal com Deus, uma compreensão progressiva, um acompanhamento paciente e respeitoso do mistério em ação, um destino comunitário.

O mundo atual marcado pela pressa, pela competição, pela disputa entre as pessoas, tem impactado negativamente pessoas ordenadas, como presbíteros e até de bispos. Muitos adoecem psiquicamente sem saber como agir. Ao mesmo tempo muitas decisões podem ser tomadas sem levar em conta as características do discernimento. Santo Inácio dizia nos Exercícios Espirituais que “em tempos de nevoeiro, não se deve mudar a direção que tinha tomado nos dias claros”.

O Papa Francisco nos diz que estamos concretamente num combate espiritual onde os cristãos carregam armas dadas pelo Senhor, e não compradas na indústria armamentista. As armas dos cristãos são a oração, a meditação da Palavra de Deus, a celebração da Missa, a adoração eucarística, a Reconciliação sacramental, as obras de caridade, a vida comunitária, o compromisso missionário. O discernimento está nessa relação entre a experiência pessoal com Deus e a experiência comunitária, de convivência com os outros numa dimensão missionária. Sinteticamente poderíamos dizer que o discernimento é a reflexão e a oração que servem de base para as decisões de acordo com o plano de Deus e não dos meus desejos pessoais, dos meus interesses particulares.

Santo Inácio dizia que há dois estados em toda a vida espiritual: a consolação e a desolação (espiritual e psicológico). O caminho de Deus é marcado pela consolação; é quando se dá o aumento da esperança, da fé e da caridade e toda alegria da pessoa está nas coisas celestiais e na salvação da própria alma. A consolação não é um sentimento psicoafetivo, pois ela brota da união com Deus como um dom da graça.

Por outro lado, a desolação se apresenta como um obstáculo à alma. É uma perturbação, uma inclinação para as coisas baixas e sem sentido, para as coisas terrenas e psicoafetivas, com inquietações provenientes de várias agitações e tentações que acabam levando à falta de fé, de esperança e de amor. A pessoa então se torna tíbia, triste, preguiçosa, um verdadeiro tempo de nevoeiro, cinzento, de escuridão, tristeza, desânimo. Esse cenário leva à perda da paz interior. Muitos encontram na interrupção da vida o ponto final desse sofrimento.

O Papa Francisco atualiza essa situação dizendo que não se trata apenas de uma questão de pecado, mas de letargia, quando a vida espiritual se torna morna e tudo acaba por parecer lícito. Então a pessoa se alimenta do engano, não teme proceder caluniando os outros, fazendo fofocas, espalhando mentiras, guiando-se exclusivamente pelos interesses egoístas e muitas formas de autorreferencialidade. Então completa: “Sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetes à mercê das tendências de ocasião”. O discernimento nos leva a indagar-nos sobre o que há dentro de nós. Seriam desejos, angústias, temores, expectativas?

O discernimento não é útil ou necessário apenas diante da necessidade de tomada de decisão na vida, como é o caso da vocação sacerdotal. Ele é sempre útil para sermos capazes de “reconhecer os tempos de Deus e a sua graça, para não desperdiçarmos as inspirações do Senhor, para não ignorarmos o seu convite a crescer”. O discernimento se relaciona com o sentido de minha vida diante do Pai. Por isso é um dom, uma graça. Devemos estar dispostos a ouvir o Senhor e os outros. Pois, “somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus esquemas”.

É importante ouvir o Evangelho e o ensino da Igreja, mas não para aplicar receitas ou repetir o passado. O discernimento liberta-nos da rigidez que não tem lugar atualmente. Santo Inácio dizia que ninguém estava dispensado do exame de consciência para saber o que o Senhor esperava de cada pessoa.

O Papa Francisco na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate nos diz que o discernimento hoje em dia é essencial, “porque a vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo mundo como se fossem todas válidas e boas” (nº 167).

Por fim, ninguém deve esperar que se ofereça um curso para aprender a discernir, pois trata-se de um exercício, portanto é na prática diária que se aprende o discernimento. É um exercício de experiência, de percepção, de sabedoria como nos diz o Papa. Trata-se de uma prática que engloba diversas atividades práticas como entendimento, avaliação, decisão e ação. Então a caminhada acontece de maneira mais segura e fiel ao Senhor.

Nos tempos atuais nossas grandes dificuldades estão no campo da desolação. Quantas pessoas parecem perder o gosto da vida e da caminhada! Chamam até de “mal do século”. A depressão que acomete tantos homens e mulheres não tem cura apenas com a ingestão de medicamentos. Eles são uma muleta apenas. Precisamos conseguir caminhar sem muletas ou bengalas. Então a prática do discernimento torna-se essencial nesses tempos de desolação.

Edebrande Cavalieri

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