O SILÊNCIO DA CRUZ

6 abril, 2022

Estamos chegando ao cerne da fé cristã, ao momento em que os fiéis se deparam com realidade mais radical da fé – Paixão, morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Para concluir esse tempo de Quaresma vamos refletir sobre uma dessas realidades que nos toca fortemente, o silêncio da Cruz. Dessa forma, somente depois do Domingo de Páscoa voltaremos a publicação desses artigos no site da Arquidiocese. Vamos dedicar um tempo para ouvir o silêncio da cruz. Não para chorar as dores de Jesus, mas sentir as nossas dores, os nossos flagelos, os nossos sofrimentos.

A realidade da cruz nos revela antes de qualquer coisa a fragilidade humana que quase sempre não queremos admitir e negamos com nossos projetos de poder, de dominação, de expansão. O desejo do super homem está no lado oposto dessa realidade e nem o próprio Deus assumiu a prepotência do poder. O Senhor Deus dos exércitos, tão exaltado no Antigo Testamento, assume a própria fragilidade humana e nos convoca para chorar, raspar a cabeça e cingir com o cilício como nos dizia Isaías 22, 12. O silêncio da cruz nos revela um Deus que nos mostra outro caminho frente aos muros construídos pelo ódio, pela violência, pela injustiça.

Na morte de cada pessoa em todas as guerras inclusive aquelas que se travam bem pertinho de nós, nas periferias, nas execuções sumárias, nos revela um silêncio que não é ausência, mas que explode em nossas almas e nos pergunta onde está o nosso irmão. As mortes nos becos e nas valas, expressão da sede de poder dos homens, revelam a cruz fincada a cada dia em nossas terras, nossos morros, nossas favelas. “E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão?” Essa pergunta ecoa do Calvário, dos inúmeros calvários de nossa vida. Então, esse tempo de quaresma nos convida para ouvir: “A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra”.

O silêncio da cruz nos mostra a dor de Deus, de um Deus que não está fora do mundo contemplando e esperando para o juízo final. Esse não é o Deus cristão revelado em Jesus Cristo. A dor de Deus é de um Deus presente no mundo, presente na história, que nos chama para o amor como forma de transgredir os limites e etiquetas que apontam e excluem pessoas como não possíveis de serem amadas. O silêncio de Deus apenas é rompido para o olhar misericordioso e a confirmação de que “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.

A cruz de Cristo nos indica onde Deus se revela e os crucificados onde Deus se faz presente. São Paulo e depois Martinho Lutero desenvolveram muito a teologia da cruz em contraposição à teologia da glória, mostrando o tempo todo um Deus todo poderoso, glorioso e edificador. O pano de fundo da Ressurreição não pode perder de vista a morte, o sofrimento, a cruz. Conhecemos verdadeiramente Deus a partir da Cruz e do sofrimento, e daí faz sentido a Ressurreição.

São Paulo presenciou um conjunto de problemas na comunidade de Corinto em que as pessoas já se consideravam ressuscitadas, pois eram possuidoras de carismas especiais e de sabedoria, vivendo um entusiasmo quase fanático. Julgavam-se perfeitas. Portando, importava agora a glória de Deus celebrada com as melhores vestes sagradas. O templo de glória não pode se sobrepor ao tempo da dor como se nada fosse, como se fosse o destino de cada um que não aceitou Jesus.

A Cruz de Cristo nos revela a loucura e o esterco dessa fantasia religiosa de nos acharmos salvos antes da hora. O Deus que se revela no calvário está despido, ensanguentado, com sede, com forme, sozinho. E São Paulo que era um grande expositor da ressurreição precisa corrigir os caminhos tomados pela comunidade de Corinto. Então recupera a teologia da cruz como resposta a essa falsa crença de que todos já estariam ressuscitados. E fala de maneira incisiva: “A cruz de Cristo se tornou a medida crítica para medir a sabedoria cristã que é como o amor que tudo suporta, tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, tudo desculpa; não é jactancioso, não se ensoberbece, não irrita, não guarda rancor; é paciente benigno e compraz-se na verdade” (1 Cor 13, 4-6).

O silêncio da cruz tem muito a nos ensinar nesses tempos tenebrosos, de tanto ódio, indiferença, mentira, rancor. Através da cruz se distingue a fé cristã dos demais mitos, pois ali se decide a verdade do pensar cristão e do seu comportamento. O cenário do calvário torna-se paradigma onde se pode discernir os espíritos e as práticas cristãs.

Estamos diante de um divisor de águas que define os caminhos de Deus e ela (a cruz) nos obriga a aceitar outra sabedoria diferente da sabedoria do mundo, de um Deus que se apresenta não de maneira grandiosa, mas com capacidade de assumir as atividades quotidianas e as fraquezas de cada dia. O desprezo dos fracos implica automaticamente no desprezo do Crucificado, desprezado, crucificado, amaldiçoado como fizeram naquele dia no Calvário. De que adianta chorar pela dor causada pela espada que traspassou o coração de Jesus na cruz e somos indiferentes às balas que explodem tantos corações em nossas periferias?

Celebrar a Ressurreição do Senhor deve comprometer cada um de maneira concreta nas diversas experiências de cruz. Desta forma, em meio a uma situação de tantas dores, desesperadora, tantas mortes, tantas injustiças, é que se faz a experiência de Ressurreição. Da escuridão tão profunda, da mais absurda forma de repressão, de tantos enterros realizados na pandemia e nas guerras, é a partir da experiência da Ressurreição que se torna possível a esperança. Vivemos tempos de muita insegurança, incerteza, medo, imprevisibilidade; somente da experiência de morte na Cruz é que a Ressurreição irá alimentar toda forma de mobilização e possíveis alternativas.

Entre nós tem sido presente ao longo da história uma espiritualidade sacrificialista da cruz que quase sempre remetia as pessoas para a repetição dos sacrifícios de Cristo com autoflagelação, sofrimento, etc. A verdadeira espiritualidade da semana santa deve tomar a experiência da cruz como capaz de transformar as situações de sofrimento em esperança, em buscar as transformações encontrando forças para continuar vivendo apesar do sofrimento do dia-a-dia.

Então nosso falar de Deus nos leva a mostrar um Deus que se envolve nesse mundo abandonado e marcado pelo poder da morte. Os crucificados de hoje não estão abandonados. Entre eles está outro que foi crucificado e lhes deu esperança do paraíso. O silêncio da Cruz é o grito mais forte de um Deus que não nos abandona. Essa é a grande mensagem de esperança que nasce do Calvário e que deveria alimentar profundamente a fé cristã. Os sofrimentos e as mortes podem ser superados.

Aproveito o momento para desejar a todos uma ótima Páscoa!

Edebrande Cavalieri

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