São Nicolau e Papai Noel: encontros e desencontros nos festejos

17 dezembro, 2020

Edebrande Cavalieri

Nesses tempos natalinos a vida cultural de nosso cotidiano se reveste de imagens e devoção, geralmente bem misturados e de difícil distinção entre o que se apoia em fatos históricos e o que se desenvolveu como lenda e impregnou a cultura. Uma questão sempre me chamou muito a atenção: como surge a imagem do Papai Noel a partir de uma figura de santo católico, São Nicolau? E como se deu a separação entre essas duas imagens?

São Nicolau é um santo da Igreja Católica, nascido em 270 depois de Cristo, que passou uns vinte anos na cadeia durante o governo do Imperador Diocleciano que impôs perseguições extremamente violentas aos cristãos. Nicolau era filho de nobres e tendo ficado órfão herdou a fortuna da família. Como cristão sentiu o chamado de Deus e chegou a Bispo de Myra na Turquia. E nessa condição de Bispo foi preso, torturado de todas as formas para que renegasse a fé cristã. Resistiu até o final, quando chegou ao poder Constantino, que deu liberdade aos cristãos.

Por outro lado, a história do Papai Noel assemelha-se à história do Bispo São Nicolau, representado como velhinho de barba branca e trajes vermelhos. E também se aproxima da história de Odin, que era o deus mais poderoso das crenças do norte da Europa, também representado como um idoso barbudo e grisalho. Segundo a crença nórdica Odin passava pelas casas entregando presentes para as crianças, desde que elas colocassem as botas perto das chaminés.

Dois relatos que são colocados de maneira próxima, mas carregam diferenças muito grandes em relação ao que os sustenta. De São Nicolau, não se tem muitas dúvidas, pois há muitas fontes históricas que fundamentam sua trajetória eclesial e pastoral em tempos de perseguição. Consta inclusive sua participação no Concílio Ecumênico de Niceia em 325, sendo recebido de joelhos pelo Imperador Constantino, em reconhecimento pela autoridade desse bispo. Mas como surge em sua história a crença num santo da solidariedade? Da generosidade?

Um dos relatos de sua história que deu base para a história da solidariedade se refere ao caso de três meninas cujo pai não possuía dinheiro suficiente para os dotes de casamentos e decidiu encaminhar para a vida de prostitutas e assim elas mesmas juntariam o dinheiro para o casamento. O Santo sabendo disso fez chegar às mocinhas saquinhos com moedas de ouro na quantia suficiente para o dote de cada uma delas.

Muitos milagres são atribuídos a São Nicolau, mas o que mais marca sua biografia é seu desapego dos bens materiais, fortemente inclinado a ajudar as crianças e as pessoas carentes. Tinha grande zelo pela educação dos jovens e por isso é muito reverenciado pelos estudantes europeus. Na cidade de Guimarães em Portugal, no dia 06 de dezembro ocorre um grande festa estudantil conhecida como “Festas Nicolinas”. Até esse ponto estamos dentro da genuína tradição cristã católica.

Uma questão nos parece importante para refletir é como aconteceu o afastamento da devoção a São Nicolau sendo transferida para a imagem de um Papai Noel, bem aos moldes de uma cultura a-religiosa? A festa de São Nicolau até os anos de 1500 era celebrada no dia 06 de dezembro, mas vai sendo transferida pela cultura não católica como prática de festejos para o momento de Natal.

Com certa segurança podemos dizer que a Reforma Protestante tratou de ir retirando parte das tradições católicas, especialmente o culto aos santos. Lutero desejava uma alternativa para a prática católica da celebração da festão a São Nicolau e orienta a se dar presentes em nome do menino Jesus na véspera de Natal. E dizia: “Aquele que está no colo da virgem é o nosso Salvador. Agradeça a Deus que tanto nos amou, a ponto de conceder-nos um Salvador”.

Na Holanda São Nicolau se tornou muito popular sendo conhecido como Sinterklaas ou Sint-Nicolaas (Santa Claus). Os imigrantes protestantes levaram essa crença em 1700 para os Estados Unidos e cresceu muito com a publicação de um poema escrito pelo teólogo Clement C. Moore com o título “Uma visita de São Nicolau” em 1823. O poema descrevia a figura de São Nicolau com cabelos e barba branca como a neve, com bochecha rosa e um nariz no formato de cereja, rosto largo e barriga saliente. Em que isso se assemelhava ao personagem cristão que exerceu o episcopado em Myra, na Turquia? Como a figura de São Nicolau vai perdendo sua identidade católica?

Na América protestante também o Natal era evitado, sendo considerado em alguns lugares uma espécie de feriado pagão, onde se festejava algo ao ar livre, com muita bebida alcoólica e um velhinho entregando presentes. Assim vai se formando uma festa de Natal como uma celebração familiar e algumas obras literárias passam a retratar a imagem de um Nicolau que voava por cima dos telhados em um trenó entregando presentes para crianças boazinhas. Entre os presentes também constava uma varinha que era para os pais que deveriam usar com as crianças que não seguiam o caminho da virtude. A devoção religiosa se veste então de uma festa mais profana e de cunho moralista e, acima de tudo, bem consumista.

Desta forma vai se constituindo a imagem do homenzarrão de barba branca, com um carro puxado por renas. Ganha força com a tradição norte americana, levada por imigrantes holandeses. Do ponto de vista religioso, nota-se um enfraquecimento da devoção a São Nicolau nos moldes da tradição católica. Mas foi somente isso que levou à mudança do personagem natalino?

A imagem do Papai Noel como conhecemos se fortalece com uma campanha publicitária da Coca-Cola nas décadas de 1920 e 1930, que consolidou a imagem do velhinho, barrigudo, barbudo e grisalho com vestimenta vermelha. E junto com essa imagem, a política norte-americana vai incorporando a ideologia de generosidade na reconstrução da Europa nos períodos de pós-guerra. O Papai Noel assim vai simbolizando a própria nação norte-americana, solidária e generosa, funcionando como mecanismo ideológico de dominação política e econômica.

Nos Estados Unidos a imagem do Papai Noel ficou estabelecida de maneira muito forte e foi levada de volta para a Europa substituindo as imagens antigas de festas devocionais. Cultura e mercado vão determinando a nova forma de festa e manutenção de imagens. E assume assim a imagem politizada de uma América de homens alegres, símbolo da generosidade americana para a reconstrução das terras devastadas durante as guerras mundiais.

E o que fazer hoje com essa miscelânea de cultura, história, crença, devoção, consumo, lendas? Para os católicos São Nicolau faz um convite para o exercício da solidariedade e da partilha dos bens, mas longe do consumismo capitalista. Convida para uma solidariedade com o próximo, um encontro íntimo e perfeito com o Jesus.

E nesses tempos de pandemia, essa solidariedade se torna ainda mais exigente na direção dos que sofrem a dor da perda de entes próximos em decorrência da Covid-19. Solidariedade com os profissionais de saúde que estão na linha de frente cuidando das pessoas infectadas! A solidariedade mais imediata está no respeito às normas estabelecidas e recomendadas pelas autoridade de saúde. A festa da ceia natalina não pode ser o descalabro da infecção entre os próprios familiares. O maior presente que se pode dar nesses tempos é a manutenção da vida dos próximos.

O nosso dizer “feliz Natal” sem essa solidariedade vivida e ensinada por São Nicolau nos inícios da era cristã, no momento atual não pode estar dissociada do sofrimento de tantos famílias enlutadas. Dizer “feliz Natal” deve expressar concretamente o compromisso de cada um de nós com a vida e não com o desleixo, com a irresponsabilidade comportamental, com o descaso com a vida de si e dos outros. São Nicolau salvou as três jovens do caminho da prostituição. Hoje os cristãos são convocados pelo Papa Francisco para a proteção da vida e por isso ele decretou o Ano de São José, que iremos refletir na próxima semana.

Um Natal de grande solidariedade e generosidade para cada um e cada família! Que o Menino Deus nos abençoe e nos guarde!

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