A pandemia trouxe algumas consequências ruins para a nossa vida e uma delas é a anestesia da vontade de sonhar. De uma hora para outra tivemos que mudar nossa vida, cortar viagens, reduzir drasticamente as reuniões e isso acabou repercutindo em nossa forma de olhar para frente, para o horizonte que se dispõe adiante. Para muitas pessoas foi um tempo de desespero, de dor, de tristeza. Para outras foi de indiferença, mas diante dos limites impostos pelas autoridades sanitárias, também tiveram que reduzir o movimento da vida em grupo. O mundo parece ter vestido cinza, sem cor, sem vontade. Então, vai-se levando como pode a vida.
Estive pensando sobre o que escrever a respeito das expectativas para o próximo ano, nesse contexto cinzento, quando me deparei com o enredo de uma série documental feita em quatro episódios chamada de “Stories of a Generation com o Papa Francisco” que a Netflix disponibilizou a partir do dia de Natal para todo o mundo. Trata-se de um olhar sobre a terceira idade, o idoso, como um tesouro a ser redescoberto, sob o ponto de vista das jovens gerações. Achei essa temática muito interessante e nela nasceu esse tema para pensarmos como propósito para o próximo ano. É preciso colorir as gerações, jovens e idosos.
Não há como dissociar o tempo dos idosos do tempo dos jovens a partir dos sonhos. Todos temos o direito de sonhar e não “esperar a morte chegar” como nos alertava Raul Seixas na música Ouro de tolo. O Papa Francisco nos diz que “sem sonhos, a vida é asséptica”, estéril. Ainda acrescenta que sendo assim estéril, a vida carece de poesia, de encanto, de brilho.
A recuperação do sentimento poético está intrinsecamente relacionada à capacidade de sonhar. A poesia, nos dizia o filósofo Martin Heidegger, não significa um sobrevoo sobre a terra, pairando nas nuvens, a fim de fugir da mesma. Muitos podem ter tido essa vontade de fugir do mundo diante da loucura da pandemia, mas isso não significa uma fuga para a poesia. Jamais esse sentimento indica um processo de alienação; ao contrário, é a poesia que traz o homem para a terra, para uma espécie de habitar novo.
A série que estamos indicando nos faz olhar para essas duas gerações que muitas vezes são postas como contrapostas uma à outra. Os idosos não podem ser descartados como um grupo que está esperando a morte chegar. O Papa nos diz que todos temos necessidade de sonhar. Então não se pode retirar essa possibilidade dos idosos, pois eles também, assim como os poetas, habitam a terra. “Os sonhos de uma pessoa idosa são a riqueza de vida que oferecem. É a riqueza de toda aquela vida que oferecem como uma experiência de vida. E o sonho dos jovens é a profecia, a capacidade de seguir em frente”. A pessoa idosa dá os próprios sonhos e o jovem os recebe para transmiti-los em vista do futuro.
A humanidade atual está enveredando por um caminho perigoso na medida em que sua população vai envelhecendo e não vê surgir tantos novos jovens. Esse processo de transmissão de sonhos pode ficar comprometido, com a prevalência de pessoas idosos. O equilíbrio entre as gerações talvez seja a fórmula mais adequada para fazer avançar o futuro e não estagnar, esperando a morte.
Por fim, os dois anos de pandemia precisam ser superados, recuperados, retomados em outra dinâmica social. Entre os vários fatores, penso que a recuperação da capacidade de sonhar seja o melhor caminho para o próximo ano. É preciso voltar a sonhar. Andar leve. Andar com os pés na terra e não sobrevoá-la de maneira alienada e ingênua.
A escola necessita desse sentimento para ser uma instituição que alimenta os sonhos e não apenas o domínio de conteúdo. Quando a escola mata os sonhos dos jovens ela não serve para mais nada, apenas para cemitério da cultura. Os idosos também precisam estar presentes nas escolas para que haja a transmissão de sonhos para esses jovens.
Outra instituição que tem um papel super importante no alimentar dos sonhos é a própria Igreja. Quando esta descarta os idosos de sua ação também se torna um cemitério eclesial. Ninguém é cristão emérito. De uma hora para outra, alguém se torna emérito e se afasta do contato com as novas gerações, com os novos padres, novos ministros. Isso reduz de maneira absurda a transferência dos sonhos para os jovens cristãos. Até nas atividades pastorais em muitas comunidades tantos idosos deveriam ser integrados.
Por fim, não posso esquecer de olhar para as periferias sociais e geográficas, com seus sonhos. Quem está olhando para elas? Na ausência do Estado, essas periferias sonham com a sobrevivência, que os seus filhos evitem o mundo das drogas ou que possam sair dele livremente; as mulheres sonham com a volta dos maridos para casa, pois são presidiários ou aqueles que saíram que não retornem para aquele inferno. Sonham ainda mais coisas bem pertinho: que haja comida na mesa e que os seus filhos não sejam mortos pela policia ou na guerra entre grupos rivais de criminosos. Com toda certeza, o mundo das periferias sociais e existenciais é o mais descolorido. Sua cor básica é o preto do luto ou o vermelho do sangue e da dor.
Assim, esperamos que o Sínodo dos Bispos que começou em outubro passado e vai até outubro de 2023 possa ajudar a Igreja Católica a fortalecer o trabalho pastoral alimentando os sonhos, integrando idosos e jovens, na expansão do Reino de Deus nesse mundo. Especialmente no Brasil, ela possa estar cada vez mais presente nas periferias sociais e geográficas trazendo o colorido da paz e da justiça.
Edebrande Cavalieri