A convite do Centro de Apoio aos Direitos Humanos tive a oportunidade de participar de uma live para refletir sobre a dignidade humana a partir de um olhar filosófico. Logo percebi como esse campo é tão complexo! Falar que temos que defender a dignidade do homem por que ele foi feito à imagem e semelhança de Deus, como o cristianismo trouxe para a humanidade, é até certo ponto fácil. Sem tirar as consequências do ato criador de Deus e implicar nossa responsabilidade na criação pouco ou nada nos eleva em termos de semelhança a Deus. A dignidade não é um carimbo que recebemos ao nascer. Sem nos perguntarmos quem é o sujeito digno de estima e consideração, sem olharmos a nossa volta e verificar o caráter de dignidade presente em tantas pessoas excluídas, pouco ou nada nos torna dignos de Deus.
Santo Agostinho nos diz que, pelo fato do homem ser dotado do livre arbítrio, ele possui capacidade de escolher livremente como agir. Assim poderá dar um rumo a sua própria existência, escolhendo a Lei Divina ou a Lei Humana. É essa capacidade de autodeterminação que nos permite a escolha voluntária de ações más que serão objeto de condenação ou boas que nos tornarão dignos de Deus.
Santo Tomás de Aquino dizia que a dignidade é algo absoluto e pertence à essência. Textualmente ele nos diz na Summa Theologica: “Tanto no homem como na mulher está a imagem de Deus, quanto a aquilo em que, principalmente, consiste a essência da imagem, a saber, a natureza racional”. Isso se deve ao fato de ele ser dotado de intelecto, de livre-arbítrio e revestido por si de poder. Ou seja, ao afirmar que o homem se define ontologicamente como um ser de dignidade estamos também afirmando que ele é princípio de suas ações, pois possui o livre-arbítrio e domínio sobre suas ações.
A Constituição brasileira em seu Artigo 1º descreve os cincos fundamentos da República Federativa do Brasil, incluindo no item III a “Dignidade da Pessoa Humana”, vindo na sequência da “soberania” e da “cidadania”. Sendo a dignidade um dos fundamentos da República brasileira, em todos os caminhos administrativos e políticos esse princípio deveria ser a lupa com a qual se deveria governar o país. Nenhuma reforma trabalhista deveria ser aprovada se não atendesse ao princípio da dignidade da pessoa humana. O mesmo valeria para qualquer outra reforma ou lei que pautasse a estrutura de governo federal, estadual e municipal.
Os cristãos católicos possuem um documento que é o balizador para as ações nesses campos tão delicados do Brasil atual. Esse documento é uma espécie de Constituição da vida cristã e ninguém deveria desconhecer. Vemos tantas pessoas fazendo acusações equivocadas contra lideranças religiosas que seguem esse balizamento chamando-as de comunistas. Nem a CNBB e o Papa escapam desses impropérios hipócritas! O Papa Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum dizia logo no início que o “homem precede o Estado” e que tanto a política como as leis deveriam servir as pessoas.
A Doutrina Social firma uma oposição a qualquer subordinação a um estado absolutista, a um governo que atenta aos direitos da pessoa, que submete as pessoas a seus interesses políticos para se preservar no poder. Afirma ainda mais que a “Igreja é o sinal e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana. E todo o conjunto doutrinário da Igreja se desenvolve a partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana (n. 107).
Ninguém nasce mais ou menos digno como pessoa humana, mas torna-se digno a partir do momento em que se adquire a cidadania, em que tenha o “direito a ter direitos” como nos diz a filósofa Hannah Arendt. Ou nas palavras de Hegel, “todos devem ser pessoas e respeitar os outros como pessoas”. Então, em sintonia com a Doutrina Social da Igreja dizemos que o respeito pela dignidade da pessoa deverá obrigatoriamente obedecer ao princípio de considerar o próximo como outro eu, de modo a garantir tudo para a manutenção de sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente. Então, caberá ao Estado garantir que todos os programas sociais, científicos e culturais sejam orientados pela consciência do primado de cada pessoa humana.
A Igreja enquanto instituição estará sempre na defesa do homem como sujeito de direitos e isso não contraria em nenhuma hipótese o Evangelho de Jesus Cristo. A Igreja está inserida no processo histórico. Uma Igreja que se cala diante da supressão de direitos da pessoa humana não apenas contraria sua própria doutrina social, mas o Evangelho que lhe dá sustentação. Citando literalmente esse documento basilar da Igreja católica: “A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro”.
Os Direitos Humanos estão inseridos como exigência prática para garantia da pessoa, de modo a impedir qualquer ato que lese a dignidade pessoal. Ao defender o homem como pessoa, a Igreja compreende-o como “sujeito ativo e responsável do próprio processo de crescimento juntamente com a comunidade de que faz parte”.
É preciso olhar sempre a história em nossa volta com essa lupa – a dignidade da pessoa humana. Não seremos dignos de Deus se acharmos normal a morte de seis milhões de judeus nos campos de concentração nazista. E ainda entre nós encontramos tantas pessoas aderindo ao nazismo ou negando a existência dessa tragédia humana. E na mesma circunstância, não seremos dignos de Deus se acharmos normal a morte nas guerras com todo tipo de arma. Não seremos dignos de Deus se me livro do outro com arma na mão.
Não seremos dignos de Deus se acharmos normal que tantas pessoas vivam em situação de rua e nos incomodamos com sua presença solicitando que a polícia os retire de nosso caminho! Que dignidade possuem as mais de trezentas pessoas nessa situação em Vitória e mais de quatrocentas na Serra? Quando a solidariedade se apresenta como tem acontecido em alguns lugares com campanhas de alimentação e proteção do frio dessas pessoas, parece que estamos sendo coniventes com essa situação e somos acusados de facilitar a vida das pessoas que se aproximam de nossos prédios e ruas, como se fossem bandidos.
Não seremos dignos de Deus se a fome do nosso irmão não nos convocar para a ação solidária! Não seremos dignos de Deus se não nos importarmos com o frio que tantos sofrem! Não seremos dignos de Deus se o discurso da dignidade for apenas um desencargo de consciência para aliviar a culpa. Que o nosso viver esteja sempre sob essa lupa tão desafiadora e essencial da vida humana! A dignidade da pessoa humana deveria ser matéria obrigatória dos currículos escolares, das homilias dos líderes religiosos, dos discursos políticos, das campanhas eleitorais, dos grupos sociais, da vida em seu conjunto. É preciso que cada pessoa olhe sempre com essa lupa e assim seja sinal e salvaguarda da dignidade da pessoa humana.
Edebrande Cavalieri