O país que sai dessas eleições não é mais o mesmo que iniciou a campanha eleitoral. E isso independe dos resultados cuja sorte foi depositada nas urnas. Essas apenas servem para alocar candidatos vitoriosos num cenário incerto, inseguro, preocupante e ameaçador. Não foi filme de terror, mas quase. Víamos a cada dia nos últimos anos um desvio do caminho iniciado em 1985, conhecido como Nova República e garantido pela Constituição de 1988.
Não estamos diante de um pecado cometido quase sem querer, que depois se vai ao confessionário e confessa ao sacerdote, recebe a absolvição e volta-se tranquilo para viver na paz do Senhor. O resultado alcançado permite a retomada do espírito de fortalecimento do Estado de direito e dos direitos humanos. Contudo, é preciso que as instituições atuem na consolidação do estado democrático. Foram feitas muitas rachaduras na estrada que estava sendo asfaltada. Tem muitos buracos ao longo do caminho.
Não foram os méritos do senhor Jair Bolsonaro que mudaram a fisionomia política desse país. Aliás, méritos é que ele não possui, pois há várias décadas vive na vida política sem ações efetivas. Como essa pessoa tornou-se uma força tão estranha a ponto de revolucionar o cenário democrático brasileiro? Responder a essa pergunta torna-se essencial para a retomada do espírito contido na Constituição de 1988. Porém, nossa radiografia histórica requer um horizonte de tempo bem mais amplo que essas três décadas passadas.
É preciso levar em consideração um Brasil profundo, constituído historicamente pela escravidão em três séculos com a conivência de instituições religiosas da cristandade. É nesse lamaçal da exploração humana que iremos encontrar as raízes da violência, do ódio, do machismo, do conservadorismo. Não se apaga assim facilmente a chaga da escravidão como imaginava Rui Barbosa que ordenou a destruição dos documentos de registros da escravidão logo após a proclamação da República.
Torna-se bem emblemática a forma como os setores escravocratas reagem ao Pontificado de Francisco e ao Concílio Vaticano II. São inconciliáveis com a história passada. E nem nos deve causar estranheza se alguns líderes religiosos estejam nessa oposição ao magistério do Papa Francisco e ao Concílio. Eles são filhos legítimos dessa história marcada pelo pelourinho, marcada pelos navios negreiros, cujo filhos negros também da Igreja foram marcados a ferro em brasa como são marcados os animais.
E assim chegamos ao século XXI sem superar essa fratura de nossas comunidades, nossas famílias, nossos amigos. Do dia para a noite nos vimos em divisões, separações, discussões aguerridas dentro de nossas casas, dentro de nossas comunidades eclesiais. Em nós deposita-se um Brasil profundo, marcado pela desigualdade, pela divisão, pela exclusão religiosa dos tempos dos escravos que não podiam sequer entrar na Igreja, tendo que ficar nas portas “oiando o santo”. Vivemos a ilusão da democracia racial e achávamos que tínhamos superado os tempos obscuros da escravidão. Essas eleições nos mostraram um país que nós achávamos que tinha ficado no passado. Como foi difícil e não aguentávamos mais caminhar no dia a dia diante desse cenário duro e sofrido!
Esse processo eleitoral na forma como chegou ao final, especialmente sua amostra no mês de outubro, nos diz que o fenômeno bolsonarista é bem coisa nossa, bastante diferente da extrema direita internacional e aflorou de modo consistente no presente dizendo-nos que não irá desaparecer do cenário assim tão cedo. O bolsonarismo mostrou-se muito forte, resiliente e coeso. Quando ficaremos livres dessa forma arcaica de vida política sustentada pela mentira, pelo ódio e pelos diversos tipos de violência?
Essa identidade não é uma acusação, mas uma constatação extraída de sua origem escravocrata. O bolsonarismo bebe nas profundezas do escravismo. E para piorar as coisas, o mesmo ideário da cristandade colonial vai sacramentando e calçando a estrada dos dias atuais. Essa cristandade não tem nenhum escrúpulo de xingar bispos ou invadir templos gritando palavras de ordem. Fazem isso em nome de Deus, assim eles se justificam. Sem culpa. Vai demorar muito tempo para superarmos essa fase dura da vida política. Por isso, a eleição não acabou. A proclamação dos resultados apenas serve para legitimar a posse, mas os desafios para superar as causas da gestação desse movimento político são muito grandes e exigem a colaboração de diversas instituições.
Além da história escravocrata que serviu como terreno para o crescimento dessa onda devastadora, é preciso reconhecer que sem melhorar a distribuição de renda, sem corrigir o alto grau de desigualdade entre nós, pouca eficácia vamos ter para impedir o contágio das pessoas. Foi o agudamento da pobreza que produziu mais combustível que fortaleceu o bolsonarismo. O retorno do país ao mapa da fome e o crescimento da população pobre são indicadores precisos desse diagnóstico.
Por isso, é simples olhar quem são os apoiadores desse movimento. Exatamente quem não quer dividir, quem não quer ganhar menos, quem quer continuar na “casa grande”. E junto deles uma parcela da população conduzida por setores da cristandade atual que fizeram dos altares palcos políticos recriando um novo tipo de coronelismo, agora de cunho religioso.
A transformação da sociedade brasileira passa obrigatoriamente pela redução da massa de vulneráveis que povoam nossas cidades e conferem crédito aos senhores de engenho. Diversas pesquisas pelo mundo afora mostram que quanto maiores as desigualdades, mais forte se constitui a extrema direita. Era esse caminho que esteve reforçado nas últimas eleições. Por isso, o espírito do Estado de direito e dos direitos humanos esteve em pauta nas discussões dos constituintes de 1988, reconhecida como Constituição cidadã. Não estamos numa sociedade democrática com diversidade de opiniões políticas, mas numa sociedade profundamente desigual e injusta.
A luta também se estende pelas instituições transformadas pelo bolsonarismo, que foi colocando explosivos em cada pedaço de estrada. Temos uma sociedade altamente armada e isso representa uma luta fratricida. A liberação de armas foi a chave do bolsonarismo para desviar a atenção sobre os graves problemas da desigualdade social. Tudo pode ser resolvido pelo indivíduo apertando um gatilho e matando outro indivíduo. Às vésperas da eleição o país presenciou dois episódios com uso de armas por pessoas que bem representam o estado de guerra instituído. As armas são para as pessoas de bem, dizem, para a legítima defesa contra os vagabundos. Sim! Os negros da escravidão eram vagabundos. E hoje quem está sendo chamado de vagabundo?
Estamos diante de um grande desafio que é refazer as instituições republicanas, cuidando das fraturas expostas dentro de nossas casas, nossas Igrejas. A Igreja Católica terá pela frente um grande trabalho que deverá ser conduzido de maneira segura pelos Bispos do Brasil. O Papa Francisco, às vésperas da eleição, falando da beatificação de uma menina vítima da violência, rezou para que Nossa Senhora Aparecida proteja e cuide do povo brasileiro e que o livre do “ódio, da intolerância e da violência”. Como os Bispos terão que se conduzir nesse cenário?
Ainda durante a visita ad limina apostolorum os cinco bispos do Leste 3 da CNBB enviaram uma carta ao povo capixaba mostrando o caminho da “melhor política”. Antes haviam publicado outra carta sobre o mesmo assunto. É nessa forma de agir que a Igreja terá forças nesses tempos turbulentos. O espírito de colegialidade e comunhão deverá ser a grande força na transformação da sociedade. Contudo, algumas ações pontuais precisam ser feitas junto a ministros ordenados que não caminham na perspectiva da sinodalidade, que é constitutivo da vida eclesial. Como diz o Papa Francisco, “quem não segue o Concílio não está na Igreja”. A mão do pastor que conduz suas ovelhas precisa de força e coragem.
Atravessar esses tempos de altas ondas requer força. A Igreja sofreu com essas fraturas. Ela também teve estilhaços, trincos nas paredes e até rachaduras maiores. A eleição não acabou para a Igreja também. Não dá para voltar à vida normal, pois não é normal conviver com a fome, com a desigualdade, com o aumento de pessoas vulneráveis. O silêncio diante dessa realidade não é nada evangélico.
Penso que esses tempos requerem posturas proféticas, de palavras proferidas com vigor e em comunhão, de modo colegiado. Dos ministros ordenados (Bispos, Padres e Diáconos) e dos leigos engajados nas diversas pastorais espera-se uma atitude que não se submeta às exigências escravocratas, pois ser cristão é ser livre. A polarização que infestou nossas comunidades e paróquias deve ser substituída pela comunhão e pela conversão. Não podemos mais ser reféns do medo, da violência e das ameaças. Afinal, foi para a liberdade que Cristo morreu na cruz e nos libertou, nos diz o Apóstolo Paulo.
Edebrande Cavalieri