A liberdade conquistada no risco de ter filhos
Vânia Reis
Psicóloga e professora
Em um pouco mais de uma geração (60 anos), a taxa de fecundidade das mulheres brasileiras despencou mais de 27% trazendo fortes impactos na estrutura populacional e na sociedade. Hoje as mulheres, com escolaridade e renda maior, preferem ter filhos com mais idade e, cada vez mais mulheres, decidem não ter filhos. Ter filhos, que era obrigação não passível de discussão, mas questão de honra, hoje é definido, quase sempre, por decisão individual da mulher ou do casal. Só nesta mudança podemos ter inúmeros desdobramentos, mas com a proximidade do Dia das Crianças vamos focar no início de tudo: o querer ter filhos.
Zygmunt Bauman, um grande sociólogo polonês, fez uma análise relevante quando expôs a fluidez das relações afetivas na dinâmica da vida contemporânea e o reflexo no dilema daqueles que pensam ter filhos. Tomar uma decisão como essa significa desejar uma relação “para sempre” que gera dependência em um mundo que rejeita o duradouro. A dependência é um grande medo nas relações afetivas hoje. A existência de um filho demanda abdicar, por tempo indefinido, das benesses da liberdade das relações fluídas contemporâneas. O compromisso traz medo aos que mergulham neste estilo de viver contemporâneo. Ter filhos hoje exige aceitar um compromisso sem prazo de validade. Não dá para devolver filhos, procurar o Procon ou o SAC por não estar de acordo com as expectativas. Para explicar o dilema dos pais, Bauman usa a metáfora de uma pessoa entrando numa ponte onde tem, do outro lado, uma nuvem espessa. Ter filhos seria fazer essa jornada. Escolher entrar em uma ponte sem qualquer certeza prévia de felicidade ou satisfação.
Ter filhos era decisão fácil nas certezas que o mundo trazia até os anos 60. A vida era pautada nos parâmetros da física clássica e implicava na linearidade de causa e efeito. Se eu fizer isso, conseguirei aquilo. Essa forma de perceber o mundo levava as pessoas a se sentirem seguras. Se seguíssemos certos parâmetros teríamos estabilidade no emprego, no casamento, na profissão, na família e assim na vida. As transformações do contemporâneo, são muito mais complexas e onde não há mais, por exemplo, linearidade entre causa e efeito. Assim entre um evento e outro há, de fato, um mundo de infinitas possibilidades de respostas, com isso desconstrue-se as certezas em relação ao futuro. As mudanças trouxeram, entre muitas outras a aversão a tudo que tem “raízes” profundas e dificultam a mudança. Entre outras desconstruções, buscou-se “desmanchar os sólidos” (valores, instituições, religião, família…) tudo que tinha força própria e valor. Foi buscada a eterna fluidez do vir a ser, do efêmero, do novo, que prometia reassegurar o senso de liberdade e autonomia, dando força ao consumismo e ao individualismo… Ter filhos se choca com as exigências profissionais e os ideais de autonomia, poder, sucesso que são a essência dos valores da modernidade líquida e muitas vezes por isso tem sido tão adiado.
Buscando a liberdade estamos sendo cada vez mais prisioneiros. Nos imperativos da nova ética social, das novas normas, estamos deixando de viver o essencial: a relação profunda com o outro afetivo. Na metáfora do Bauman, patinamos no gelo fino da superfície e nunca podemos parar senão afundamos. Nesta lógica somos superficiais e focados nas aparências. Muitos estão insatisfeitos, ansiosos e se sentindo vazios. Ao se ater às infinitas possibilidades de relacionamento, corremos o risco de não alcançar verdadeiramente nenhuma delas.
Não sei você, mas essa realidade não me satisfaz. Precisamos apreender a correr riscos em busca de valores menos tangíveis, valores que os bens de consumo não trazem, mas que são libertadores. Precisamos vencer o temor de amar, de se comprometer. Leo Buscaglia, nos instiga a refletir o perigo que é viver sem correr riscos : “Rir é correr o risco de parecer tolo. Chorar é correr o risco de parecer sentimental. Estender a mão é correr o risco de se envolver. Expor seus sentimentos é correr o risco de mostrar seu verdadeiro eu. Defender seus sonhos e ideias diante da multidão é correr o risco de perder as pessoas. Amar é correr o risco de não ser correspondido. Viver é correr o risco de morrer. Confiar é correr o risco de se decepcionar. Tentar é correr o risco de fracassar. Mas devemos correr os riscos, porque o maior perigo é não arriscar nada. (…)”, e continuando fala dos que não querem correr risco para não sofrer e, no final ‘”não conseguem nada, não sentem nada, não mudam, não crescem, não amam, não vivem” e assim vivendo, são acorrentadas por suas atitudes e deixam de ser livres.
Estamos aprisionados nesta cultura do provisório, do prazer sem dor, no raso, no morno. A troca afetiva entre pais e filhos, entre pessoas afetivamente envolvidas pode ter dor, angústia e sofrimento, mas nada se compara ao amor que nos retorna.
O dia da criança está chegando e inspirada no Papa Francisco eu também os convoco a ir contra a corrente e a lutar contra a cultura do provisório que, no fundo, crê que não somos “capazes de amar a verdade.” Ter ou não ter filhos pode ser uma decisão sua ou imposição da vida, mas “tenhamos a coragem (de correr risco e) de sermos felizes!”. Não tenhamos medo de amar!!!