A morte de um cliente

27 novembro, 2020

Vânia Reis

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A morte do João Alberto no Carrefour chocou o mundo. Não poderia ser diferente. Um assassinato bárbaro, assistido como algo normal e garantido pela funcionária da instituição a não interrupção. Levantam a hipótese de ter sido um ataque racista é mas há muito mais nesta cena que assistimos. Vamos analisar os fatos:

O cliente teve uma embate com a funcionária minutos antes,  estava alterado emocionalmente e ao que parece, já haviam tido outros desentendimentos. Atender  clientes desequilibrados faz parte do dia a dia da empresa comercial.  O desequilíbrio emocional dos seguranças é inegável. O ódio, a violência não são dos fatos ocorridos. Estes dois rapazes viveram a síndrome do porteiro ou do “pequeno poder”, conforme os teóricos definem. Nesta síndrome a pessoa ao receber pequena parcela de poder o exerce de forma absoluta, irracional e tirânica, sem se preocupar com as consequências. Os dois deram vazão descontrolada aos seus impulsos reprimidos percebendo-os como tendo sido autorizado pelo cargo. Isso para a Fiscal é tão forte que ela filma, de perto, a cena, a centímetros do assassinato. Ela autorizava institucionalmente o assassinato.

 A atividade de segurança atrai pessoas com dificuldades emocionais, por inúmeras razões. Há normas para porte de armas, mas as nossas políticas públicas (é claro) não consideram punhos, joelhos e mata-leão, que mataram João Alberto, como armas, assim não obriga avaliação psicológica dos que não usam armas.

Para as leis brasileiras a empresa que contrata terceiros é corresponsável pelos atos deles, assim não é cabível o argumento que quer tirar a responsabilidade da empresa dizendo que os seguranças “eram terceirizados”. Responsabilidade sem culpa? Pode até ser, mas neste caso o Carrefour não está sozinho. São raras as empresas de segurança no Brasil que realizam avaliações psicológicos em seu quadro (à exceção dos que tem porte de armas).  Como dar poder às pessoas desequilibradas. Isto é inaceitável e precisa ser revisto, não importa a que tom de pele esteja se falando.

A reposta oficial do Carrefour abrange a cobertura financeira à família do João Alberto e o treinamento do seu pessoal como resposta ao acontecido. É inquestionável que os funcionários envolvidos, terceirizados ou não, estavam despreparados para as suas atividades. Mas pensar que treinamento vai impedir que isso aconteça novamente, é ter visão muito curta. O foco precisa ser ampliado, inclusive da empresa. Treinar é obrigação dela. Inibir o racismo também.

Houve preconceito racial dos dois seguranças brancos contra o cliente negro? Não temos clareza pois a fala de um dos seguranças: “Já te avisamos da última vez!” levanta outras hipóteses também e é necessário aprofundar, com seriedade, os fatos. Condenar antes de investigar é muito comum aqui no Brasil e não pode acontecer.

É bem possível que o estopim do ataque se não gerado pelo preconceito racial ou social que muitos brasileiros sentem, foi formatado por eles. Veja a diferença do acontecido com uma advogada muito alterada em uma padaria há poucos dias em São Paulo. Apesar do total desequilíbrio e ofensas da advogada, de classe média, que humilhava uma funcionária, branca, o desfecho foi totalmente diferente. Chamada a polícia, a cliente foi presa em flagrante. Souberam lidar com o problema, mas isso se deveu ao fato dela ser branca? Ou de classe média? Possivelmente, mas o certo é que foi a competência dos gestores presentes na padaria que deu o desfecho correto e hoje a advogada cumpre prisão domiciliar.  Esse é “o ponto”, o diferencial: pessoas que sabem lidar com pessoas.

A discussão sobre o racismo no Brasil é antiga, mas contesto o atual adjetivo dado ao mesmo como “Racismo Estrutural”. O racismo não estrutura o brasileiro. Faz parte da nossa cultura sem dúvida, tem que mudar essa cultura, não tenha dúvida. A forma de enfrentar a questão racial no Brasil é internamente tão diferenciada que não pode ser colocada como hegemônica. O brasileiro é racista ou o brasileiro não é racista. Essa parece mais como uma simplificação, um enquadre em um discurso único, que não nos define. Vamos pegar duas realidades bem distintas da nossa formação como nação para tornar claro nosso ponto de vista. Dois exemplos do espaço social do negro no Brasil: na Bahia colonizada lá atrás por portugueses que usavam a miscigenação como forma de colonização e no Rio Grande do Sul, colonizado por alemães, que não só não miscigenavam como segregavam duramente os negros. Não preciso falar da diferença abismal destes dois contextos. Essa diferença de força do preconceito gerados nestes contextos gerado forças e ações diferenciadas. Somos todos brasileiros e fomos educados informalmente com essas diferenças. Está na educação não formal, ou seja, na que é transmitida pela família, o alvo final. Mudar, não necessariamente por dívida histórica, mas por uma visão humanista da realidade atual. O preconceito é algo construído e a base está no núcleo familiar. As ações de educação formal já chegaria tarde para mudar essa visão. Essa mudança cultural, que implica na mudança do imaginário de uma população, como afirma Le Goff, precisaria 100 anos para mudar. Não é simples mudar cultura. Mas essa mudança cultural já foi iniciada, desde o século passado. O esforço continuado na busca da mudança do nosso imaginário, ainda precisaria empenho sistemático de mais uma geração, para chegarmos onde queremos: pessoas de qualquer cor, origem ou feios ou bonitos, magros ou gordos respeitados e não discriminados. Temos que persistir no desejo de mudança, sem perder a nossa visão mais sistêmica da realidade.

Que há preconceito social no Brasil não parece haver dúvida. O que não podemos esquecer que o preconceito racial anda de mão dada com o social. Quando houve a abolição da escravatura, não predominava a consciência que era preciso dar condições de desenvolvimento para esses antigos escravos. O resultado disto foi o surgimento de uma nova forma de escravidão pela falta de qualificação e alfabetização da maioria destes recém libertos. A impossibilidade de sair da pobreza os levou a uma escravidão social, pela baixa remuneração e de oportunidades. Dessa escravidão muitos brasileiros precisam ser libertos.

Pessoas desequilibradas, não treinadas adequadamente, admitidas por empresas que mesmo corresponsáveis, não exigem no processo seletivo a avaliação da saúde mental da sua equipe de segurança e, requerem apenas que o indivíduo seja forte, saudável fisicamente e sem antecedentes criminais é uma outra situação que não pode continuar.

Por não ter uma Gestão Estratégica do Recursos Humanos, pela atitude insana de sua fiscal de Caixa o Carrefour perde diariamente o valor de suas ações na Bolsa de Valores. Por falhar na seleção e no treinamento o Carrefour precisa ser punido exemplarmente. As empresas precisam ser confrontadas com as consequências das suas ações como alerta para as demais.

Quanto aos nossos preconceitos precisamos uma revisão cultural, mas sem simplificação ideológica do problema. Medidas que precisarão de uma geração inteira para se ter êxito, são complexas e não podemos esmorecer. Temos que exigir ações públicas efetivas, especialmente na área da educação, para começar a mudar, de fato, essa realidade.

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