Vania Reis
Estamos vivendo um tempo muito estranho em que a imposição de limites é constantemente questionada de um lado e altamente utilizada de outro, sem qualquer regra explícita que nos ajude a colocar o cotidiano sob uma ótica da racionalidade. Este estado das coisas, que nos parece confuso e caótico, “virou a nossa mesa” e, de fato, nada tem a ver com a pandemia. Desde o pensamento iluminista, mas significativamente com os pensadores do século passado, tomou corpo a ideia de uma desconstrução sistemática de tudo o que nos deu referência e assim vimos (quase) tudo que era sólido se desmanchar no ar. Todas as estruturas, regras e inclusive as autoridades que as defendiam foram/são gradativa e constantemente atacadas.
Todos os dias vemos questões muito controversas que comprovam a falta de referenciais e valores sólidos em nossa sociedade e que nos fazem pensar na pergunta que Galvão Bueno cunhou: “e pode isso, Arnaldo?” Assistimos as transgressões às regras até então válidas serem feitas sem qualquer cerimônia. Sem especificar, pois são inúmeros e controversos os exemplos, vejamos algumas destas questões que nos causa espanto:
- Quais são os limites de ação de cada poder do Estado Brasileiro? O STF pode fazer isso? Os senadores podem agir assim? O Presidente pode dizer isso? O General pode agir assim ? Os Ministros podem decidir nestas circunstâncias?
- Qual o limite de ação entre o Estado e a Família? O Estado pode determinar as ideias ou o “como penso”, para a educação dos meus filhos?
- Quais os limites da sociedade: A imprensa pode fazer isso? Posso misturar as regras da minha casa com as do espaço público? Posso falar tudo que eu penso? Na hora que eu quiser? O que é certo? O que é errado?
Parece que os valores, a ética e a moral passaram a ser relativos e circunstanciais. Nada mais é absoluto. Só em falar em moral e bons costumes já torcem o nariz. Então qualquer “costume”, qualquer prática, pode ser boa? Onde será traçado o limite? Onde está o “juiz Arnaldo”, que respeitado, era exemplo? Que ideia mais angustiante a de não ter referências, quão aflitivo é a noção de não ter limites às ações! As regras hoje parecem ser ditadas pela consciência individual. Como viemos parar neste lugar tão caótico?
Foram diversos os teóricos precursores e formadores da mentalidade moderna. Muito, antes da emblemática Revolução Francesa já havia desigualdade social e autocracia, mas foi nela que as ideias ali difundidas, muito ansiadas pelo povo, acharam sua força: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
Com o tempo as margens destes valores foram se alargando e hoje extrapolaram alguns limites nos fazendo deparar com perguntas essenciais e urgentes. A primeira: liberdade até que ponto?
Vamos pegar os pensamentos nucleares que vieram e desconstruíram modos de pensar, incluindo o da liberdade individual que extrapolados hoje, nos levam a esse sentimento de falta de chão! Algumas das ideias que mais atacaram os pilares do nosso cotidiano foram as de Schumpeter e sua proposição da “destruição criativa”, que pregava jogar no chão todas a estruturas e criar a partir disto. O pensamento que inovação valeria por si só e que os fins justificariam os meios. As de Marx e seus companheiros, com materialismo histórico que rompeu com qualquer tradição idealista, e atacou qualquer ideia de autoridade constituída: a do pai, a do patrão ou a de Deus. E as de Nietzsche que atacam frontalmente a religião, a moral, a cultura e a filosofia: “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!” ele falou e propôs em seguida: “Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!” Dando status de deuses a cada um, junto com outros muitos pensadores contemporâneos desta “história superior”, chegamos neste aparente caos do individualismo onde as regras são estabelecidas a partir da ótica de quem as determina. A liberdade não encontra limites e o individualismo é chão instável. Não ter estruturas coletivas sólidas é absurdamente angustiante para a grande maioria de nós.
Se esse caminha de liberdade sem limites é fonte de angústia , então tomemos emprestada a frase do antigo ministro Rubens Ricupero: “se o futuro é pior que o passado”, temos que seguir essa estrada delineada? Temos que viver esse futuro que não queremos assim mesmo? A ideia central é clara: “O futuro não é absolutamente predeterminado por nosso difícil presente”. Podemos sim mudar nosso mundo e nosso destino. Não podemos pensar que podemos mudar o mundo inteiro, nem que podemos fazer isso sozinhos, mas, temos condições de mudar o nosso mundo pessoal. Se formos coerentes com nossas crenças e valores cristãos, teremos sempre as referências necessárias para nossa ação na sociedade. Pela minha consciência cristã agirei e, que o outro responda pela ação dele. Mas para agir assim será preciso ter força para remar contra a corrente do pensamento hegemônico. Não tirarei vantagem pessoal mesmo podendo, quando minha consciência me diz que não devo.
Posso até continuar sem as respostas aos questionamentos do mundo externo acima colocadas, mas eu posso sair deste caos. Não posso responder pelos outros e não os julgarei. Posso me libertar das angústias, superar as incongruências externas e assim ser feliz, acreditando que outros se juntarão a nós, praticando e ensinando os valores cristãos como nosso horizonte para lidar com o caos deste mundo e ajudando a outros neste mesmo caminho. Nossa força não virá de impulsos externos, mas será construída internamente pela coerência de nossas ações, pelas nossas orações, mas acima de tudo pela força do amor do Espírito Santo em nós. Esse é sim é um terreno seguro!