A QUESTÃO DA AMAZÔNIA E A POSIÇÃO DA IGREJA

22 junho, 2022

As mortes do ambientalista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips mais uma vez expõe ao mundo inteiro o drama da região amazônica. Na verdade, trata-se de uma tragédia em diversos sentidos. O sangue de tantas pessoas, algumas poucas que cabem nos noticiários, mas a grande maioria apenas recebe uma simples cruz sobre a sepultura com os dizeres lapidais, continua a jorrar. Se antes escorria o leite das seringas para a fabricação de látex, agora escorre sangue por todos os lugares, fruto da ganância das mineradoras ilegais e queimadas criminosas.

Muitos defensores das políticas de destruição da Amazônia alegavam que a iniciativa do Papa Francisco de convocar um Sínodo da Igreja nessa região incorria em intromissão na soberania nacional. Contudo, os participantes dessa grande assembleia eclesial expressavam “uma profunda consciência da dramática situação de destruição […] com o desaparecimento do território e de seus habitantes […] com uma corrida desenfreada para a morte”. Bruno Pereira desde os 22 anos lutava contra a invasão dos territórios indígenas.

No Documento Final, os participantes do Sínodo em 2019 afirmam que a região amazônica “requer mudanças radicais de suma urgência e um novo direcionamento que permita salvá-la”. Temos quase sempre uma visão romântica da selva amazônica e da população que a habita.

O Documento Final do Sínodo da Amazônia ressalta a gravidade da situação com a “apropriação e privatização dos bens da natureza, com concessões florestais, entrada de madeireiras ilegais, caça e pesca predatórias, megaprojetos insustentáveis, contaminação causada pela indústria extrativista e lixões urbanos, doenças derivadas da contaminação das águas e do solo, narcotráfico, grupos armados ilegais formando grandes milícias, alcoolismo, violência contra a mulher, exploração sexual, tráfico humano, assassinatos de lideranças e defensores do território”.

Essa realidade não nasceu espontaneamente na região. Por traz dela estão os interesses econômicos e políticos dos setores dominantes da sociedade brasileira, com a cumplicidade de alguns governantes e algumas autoridades indígenas. Por trás de cada morte há uma razão profunda que remete ao interesse econômico e ao poder político. Tudo está interligado nos diz o Sínodo da Amazônica.

O Sínodo representou um forte movimento de escuta do clamor do território e do grito dos povos, e cabe à Igreja nesse momento de dor e martírio “fazer memória dos passos” de tantos que ali deixaram e entregaram suas vidas. Bruno Pereira e Dom Phillips não são os primeiros e nem serão os últimos mártires dessa região, pois a causa pela qual lutavam, como nos garante Santo Agostino, não difere da luta por um reino de Deus nesse mundo, de paz e solidariedade.

Por isso, durante o Sínodo foram feitos diversos momentos de espiritualidade com a Oração dos Mártires do Caminho: Vidas pela Vida, Vidas pelo Reino, Vidas pela Amazônia, com a lembrança de muitos que deram a vida nesse caminho como: Irmã Dorothy Stang, José Cláudio e Maria do Espírito Santo, Mons. Alejandro Labaka. Ir. Inês Arango, Ernesto Pill Parra, Pe. Alcides Idárraga, Pe. Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo, Pe. João Bosco Burnier, Frei Vicente Cañas, Edwin Chota, os Mártires do Massacre de Bágua, Pe, Raimundo Hermann, Sabino Romero, os Mártires do massacre de el Amparo, Alfredo Vracko, Pe. Ezequiel Ramin, Ir. Adelaide Molinari, Bernardino Racua, Giulio Rocca, Pe. Mauricio Marglio, Osvaldino Viana, Josimo Morais Tavares, Lázaro Condo, Chico Mendes, Ir. Cleusa C. Rody Coelho. O Sínodo designa-os como os seguidores de Jesus em sua paixão, morte e ressurreição gloriosa que viveram em meio a uma contradição acentuada e lutaram por uma ecologia integral na Amazônia e conclui: “Este Sínodo reconhece com admiração aqueles que lutam, com grande risco de vida, para defender a existência deste território”.

A esse grupo incluindo todos aqueles que não foram mencionados na história podem ser incluídos os nomes de Bruno Pereira e Dom Phillips que na região do Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil, entregaram seu sangue nos últimos dias. A luta de Bruno Pereira tem início ainda com 22 anos quando ingressou na Funai defendendo o território indígena contra invasores, principalmente garimpeiros e madeireiros ilegais. Trata-se de um dos maiores indigenistas do Brasil de todos os tempos e junto com ele estava o jornalista Dom Phillips, jornalista britânico que vivia no Brasil desde 2007, escrevendo sobre política, pobreza e desenvolvimento cultural.

Dom Phillips estava no Vale do Javari, junto com Bruno Pereira, apoiado pela Fundação Alícia Patterson com o objetivo de escrever um livro que seria concluído no final desse ano sobre as diversas questões que envolviam os problemas da região. Como se trata da segunda maior terra indígena do Brasil, os problemas maiores estavam relacionados com a atividade ilegal do tráfico de drogas, roubo de madeira e garimpo ilegal.

Trata-se de uma região de extrema gravidade na Amazônia. Ainda é de se destacar que Bruno Pereira, no governo atual, foi exonerado em 2019 do cargo de Coordenador Geral de Índios Isolados, mas continuou assessorando a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. A causa dessas mortes não pode ser buscada em atos isolados, de cunho pessoal, de algum matador de aluguel. Os interesses presentes na região nos remetem a um esquema organizado para deixar o caminho livre para a devastação cultural, ambiental e populacional. Trata-se de um caso grave de pecado presente nessas terras que a Igreja não pode fingir de não lhe afetar.

Diante desse quadro desolador, de mortes, corrupção, descaso governamental, bem descrito na escuta sinodal por ocasião do Sínodo da Amazônia, fica a questão a ser respondida por cada cristão: isso tudo não nos afeta? Como Igreja cada cristão é chamado a uma conversão pastoral. Uma Igreja missionária em saída exige que o caminhar pastoral navegue através dos rios, nos lagos, no meio do povo, pisando no chão duro. Sem esse cheiro de mata e água, de poeira e fumaça das queimadas, de povo, a Igreja definha e se perde na própria imagem autorreferente. Os rios com suas águas devem nos unir e não nos matar e nos separar. Diz-nos o Documento Final do Sínodo: “Nossa conversão pastoral será samaritana, em diálogo, acompanhando pessoas com rostos concretos de indígenas, de camponeses, de afrodescendentes (quilombolas), de migrantes, de jovens e de habitantes das cidades”.

A Igreja, conforme o Documento Final do Sínodo, faz a opção de compromisso na defesa da vida em sua integralidade, estando ao lado das comunidades indígenas respeitando seus valores e tradições, na defesa e preservação dos rios e florestas que são espaços sagrados, fonte de vida e sabedoria. Além disso, a Igreja se compromete na defesa de tantos que corajosamente defendem a vida em todas as suas formas e etapas, como no caso atual são Bruno Pereira e Dom Phillips. O serviço pastoral central da Igreja constitui um serviço à vida plena dos povos indígenas para frear as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas e a promover o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico. Sozinhos não chegamos a lugar nenhuma.

Por fim, a Igreja sempre deverá ser capaz da interpelação profética fazendo-se voz da terra e dos povos em seu grito de dor, com seu sangue derramado. Uma Igreja que se cala diante de tantas mortes não será semente de novos cristãos como se dizia no antigo império romano com o martírio dos cristãos. Além de ser um grito profético contra toda forma de morte e injustiça, também será uma mensagem de esperança para cada pessoa Amazônia, para cada centímetro de terra daquela região, para cada árvores e cada rio.

Segundo a CNBB, as mortes de Bruno Pereira e Dom Phillps integram a lista de dramas vividos na região amazônica expressos pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica Querida Amazônia. “Os interesses colonizadores que, legal e ilegalmente, fizeram – e fazem – aumentar o corte de madeira e a indústria mineradora e que foram expulsando e encurralando os povos indígenas, ribeirinhos e afrodescendentes provocam um clamor que brada aos céus”. Diante de nós está o sonho por uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida, que preserve a riqueza cultural e o ambiente em sua integralidade.

As vozes proféticas de Bruno Pereira e Dom Phillips se unem a tantos mártires e ecoam em nossas comunidades eclesiais: estamos ouvindo esses gritos de dor? Estamos ouvindo esses pedidos de ajuda? Ou estamos ouvindo vozes que nos levam à alienação da realidade. É preciso tomar muito cuidado com quem deturpa a Palavra de Deus nas terras amazônicas, especialmente determinados líderes religiosos, para se satisfazerem em sua ganância e cobiça, aliando-se ao poder explorador e assassino. Então nos diz o Senhor Deus: “A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra” [do Vale do Javari].

Edebrande Cavalieri

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