A reforma da Igreja em saída missionária

19 maio, 2021

Edebrande Cavalieri

Em uma carta enviada ao Cardeal Kevin Farrell, Prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, em preparação ao Encontro Mundial das Famílias ocorrido em 2018 em Dublin, assim o Papa Francisco explicitou o seu sonho de Igreja, que foi também mostrado em seu discurso aos membros do Conclave, antes de sua eleição: “Sonho com uma Igreja em saída, não autorreferente, uma Igreja não passe longe das feridas do homem, uma Igreja misericordiosa que anuncie o coração da revelação de Deus Amor que é a Misericórdia”. O que Francisco quer dizer com uma “Igreja em saída missionária”? Parece-me que aqui está uma chave interpretativa do seu programa de reformas.

Nesses oito anos de pontificado do Papa Francisco e da publicação da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, publicado em 24 de novembro de 2013, documento central que traça algumas diretrizes para a reforma da Igreja e uma nova etapa evangelizadora, ouvimos muito a expressão “Igreja em saída”, mas será que compreendemos o real significado desse conceito eclesiológico fundamental do Magistério de Francisco? Esse documento está embasado na Constituição dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II. E o Papa nos alerta que suas reformas, desejadas pelo conclave que o elegeu, deve estar nessa linha de uma “Igreja em saída missionária”.

Ao mesmo tempo em que aponta essas diretrizes, o Papa vai alertando para os perigos de se manter a perspectiva da autorreferencialidade. A Igreja em saída se alegra com a vida inteira da comunidade dos discípulos missionários. Retomando o Magistério do Papa Paulo VI, Francisco nos diz que é preciso alargar o apelo à renovação para que a ação eclesial não se feche na comunidade dos discípulos, mas atinja a Igreja inteira. E para isso deve aprofundar a consciência de si mesma, fazer um rigoroso exame de consciência, meditar sobre o próprio mistério e comparar com a imagem ideal desejada por Cristo. Trata-se de responder à pergunta: Que rosto real a Igreja apresenta hoje? Daí nasce o desejo de reforma, de emendas dos defeitos, que a própria consciência denuncia e rejeita.

E nesse exame percebemo-nos na necessidade de sermos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade. No parágrafo 27 da Evangelii Gaudium Francisco explicita seu sonho: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação”. E no mesmo parágrafo retoma o Magistério do Papa João Paulo II que dizia aos Bispos da Oceania: “Toda renovação na Igreja há de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão eclesial”. Assim podemos entender de maneira bem clara que uma “Igreja em saída” missionária não é compatível com uma Igreja autorreferencial, que está mais preocupada com sua preservação institucional, vítima de uma espécie de introversão eclesial.

Tantas vezes ela não se dá conta do “mistério da lua” que não possui luz própria. Uma Igreja que “só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado não se encaixa no sonho de Francisco. Uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem suas energias a controlar”. O texto nos diz que “são manifestações dum imanentismo antropocêntrico”. Em vez de levar o Evangelho de Jesus Cristo, prendem-no dentro da Igreja. Nem nos damos conta que Jesus está batendo à porta para sair.

A autorreferencialidade se apresenta no desejo de “dominar o espaço da Igreja”, com uma liturgia pouco centrada no mistério da fé, no apego excessivo ao aspecto doutrinário e de prestígio da Igreja. Estamos diante de uma mundanismo espiritual que “esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou numa atração pelas dinâmicas de autoestima e de realização autorreferencial”. E acrescenta mais outras marcas da autorreferencialidade quando alguém “se apresenta a si mesmo numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções”. Inclui-se também no rol dos perigos da autorreferencialidade o esforço “num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações”, onde o principal beneficiário é a Igreja enquanto organização presente na sociedade e não o povo de Deus, objeto de sua missão. Uma Igreja autorreferencial “não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado”, a verdadeira luz da Igreja.

Diante de uma Igreja em que ocorre um excesso de zelo para cuidar de si mesma, mais preocupada com as vestimentas pomposas e que causam status, com cerimônias pouco celebrativas do mistério da fé, Francisco nos diz que sua preferência é por “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas a uma Igreja enferma pelo fechamento” (EG 49). Há muitas pessoas que estão mais preocupadas com uma espécie de restauração da identidade católica mostrada no Concilio Vaticano I, deixando de lado o Concílio Vaticano II de uma Igreja “Luz dos Povos”. Francisco formou-se padre bebendo das fontes do Concílio atual e por esse motivo sofre tantos ataques de grupos conservadores. Para Francisco é melhor uma Igreja enlameada nas estradas das periferias geográficas e existenciais que uma Igreja de vestimentas e pompas imperiais.

Francisco questiona profundamente a estrutura eclesial em função de seu clericalismo, classificado como “enfermidade” que destrói a Igreja a partir de dentro de si mesma. E assim resgata o espírito do Concílio Vaticano II. E chama todo o povo a uma nova evangelização, mas para isso é preciso “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Essa é a Igreja em saída e não autorreferencial. Uma Igreja que se basta e que se acha com luz própria não é a Igreja conduzida pelo Papa Francisco.

Usando o próprio vocabulário do Papa Francisco podemos sintetizar o conceito eclesial de uma Igreja em saída da seguinte forma: trata-se de uma Igreja que se move, que faz opção pelos últimos, que vai à periferia, que sai de si mesma, que anda pela rua. Trata-se de uma Igreja inclusiva, não excludente, não narcisista, que não vive para si mesma, que não é cartório. Uma Igreja inteiramente missionária, discípula missionária. Francisco arrisca até a dizer que a vê como um hospital de campanha, um campo de refugiados. Aos bispos ele sempre pede que não poupem esforços para ir ao encontro do povo de Deus, que estejam perto das famílias com fragilidade e cuidem da formação dos seminaristas priorizando a qualidade e desconfiando daqueles que apresentam-se refugiados na rigidez.

Para que as reformas produzam frutos na perspectiva de uma “Igreja em saída” é preciso desvincular-se da centralidade de si mesmo. A autoridade eclesial deve superar a tentação da autorreferencialidade, abordando toda a rica tradição da Igreja não como uma história fechada, trilhos duros, uma espécie de museu das verdades a serem preservadas a qualquer preço, mas um jardim onde as mesmas plantas podem ser cultivadas, com novos adubos, novas técnicas. A tradição mostrou muitas flores e frutos, porém temos condições de fazer desse mesmo jardim algo muito mais belo e alimentador. Não queiramos ser a reencarnação de antigos jardineiros ou agricultores, pois a vida é puro dinamismo, e tudo está interligado. Não há mais o dentro e o fora (da Igreja). A salvação é oferecida a todos. O jardim da Igreja em saída missionária deve deixar as pessoas alegres, leves, livres. Talvez seja melhor percorrer as trilhas desses jardins que seguir a estrada de trilhos de ferro que tinham outros objetivos históricos e eclesiais.

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