A VIDA EM #TBT

13 outubro, 2021

Edebrande Cavalieri  |   

Em 2012 essa sigla inicia seu uso no twitter e se espalha pelas redes sociais tornando-se expressão de diversos modos de levar a vida. O que mais conhecemos é nesse tempo de pandemia a postagem de fotos de eventos anteriores à Covid-19 para mostrar a falta que se sente de uma vida mais livre. Contudo, esse famoso #tbt expressa outros modos de existência.

Os termos na língua inglesa são throback Thursday, que em tradução literal seria “quinta-feira do regresso”, ou quinta-feira da nostalgia. Tudo indica que a origem tenha nascido do blog Nice Kicks norteamericano que às quintas-feiras publicava fotos de tênis antigos.

Na verdade, os conceitos, as palavras, as expressões e gírias vão se tornando eficazes na medida em que expressam dimensões da vida, da cultura. No nosso caso, a #tbt não expressa apenas uma foto que você traz para a lembrança de momentos passados. Muitas vezes, essa sigla expressa uma dimensão antropológica bem mais profunda. Sem pretensão de elaborar análises de cunho psicológico, queremos mostrar alguns pontos que nos parecem interessantes para refletirmos.

O entendimento desse fenômeno requer primeiramente distinguir dois componentes fundamentais presentes nesse caminho nostálgico. Em primeiro lugar há que se destacar a necessidade do homem de produzir lembranças. Ao longo da história isso se fez até como arte nas diversas esculturas e pinturas de personalidades religiosas, políticas ou culturais.

A Igreja aproveitou também dessa dimensão humana produzindo as mais diversas imagens dos santos e das santas cultuados nas devoções populares. Não apenas as igrejas se transformaram na casa dessas imagens, mas também com o advento da imprensa cresceram as reproduções gráficas dessas imagens publicadas em livros e revistas. Muitas dessas imagens ficam distantes do protótipo real. Uma imagem de um santo nem sempre é expressão de uma foto daquele mesmo santo. Muitas vezes é expressão de uma infinidade de relatos de uma dada cultura religiosa e devocional.

Esse modo de percorrer o passado como lembrança é próprio do homem e não há nada de mal nisso. Mesmo que a Reforma Protestante tenha eliminado essa prática nas diversas Igrejas e até utilizado para campanhas proselitistas gerando sentimentos de intolerância religiosa, a Igreja Católica buscou sempre compreender e pregar essa lembrança como algo próprio da dimensão antropológica do homem. Não se trata da adoração de imagens como é comum ouvir em alguns meios religiosos evangélicos. A memória torna-se nesse aspecto um elemento vital para as gerações do presente e do futuro. Ela vai se atualizando e reconstituindo as sociedades ao longo do tempo.

Temos então um vivido que se situa no passado, em gerações passadas, que vai se presentificando. Contudo, essas lembranças de coisas vividas podem sofrer desvios, interferências, afastando-se do contexto em que foram produzidas, ganhando nova reorganização no presente. Então a capacidade imaginativa do homem tende a mudar a realidade daquela lembrança. A partir de uma lembrança dada o homem desenvolve um novo ato de linguagem e comunicação daquele vivido, muitas vezes dotando-o de juízos tidos como expressão da verdade.

O segundo ponto a se distinguir na experiência da lembrança é o preenchimento deformado do seu sentido. Não estamos mais diante de uma foto real daquele passado vivido, mas de uma deformação do mesmo. Caímos então numa situação perigosa, pois muitas pessoas tem a tendência de exaltar positivamente aquele passado tornando-o campo da nostalgia, da saudade daqueles tempos, de como aquela época era tão boa. Muitos fazem do paraíso terrestre um campo nostálgico, da saudade, quando deveria se constituir em campo de esperança e de reconstituição nova da vida.

O campo nostálgico é tão forte em termos antropológicos que muitas pessoas passam a vida tentando recriar aquele contexto vivido, aquela foto tirada com pessoas felizes, sorridentes. Querem reconstruir aquele Jardim do Éden; até são organizadas excursões religiosas para esses lugares nostálgicos, quando deveriam ser apenas lugares da memória a ser presentificada e não restaurada.

Trata-se de um olhar para trás. Não temos como não lembrar do texto do livro do Gênesis (19, 17-26) em que Deus orientava Ló e sua esposa nos seguintes termos: “Livra-te, salva a tua vida; não olhes para trás, nem pares em toda a campina; foge para o monte, para que não pereças […]. E a mulher de Ló olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal”. Não se sabe exatamente o que se passou no coração dessa mulher, contudo pode-se arriscar um juízo sobre esse olhar para trás como a tentação de permanecer apegada às coisas que havia deixado na cidade, as pessoas de seu círculo de convivência. O olhar para trás acabava impedindo-a de avançar para o encontro com outra realidade, para a qual Deus chamava.

A vida em #tbt é muito mais que uma moda do momento, da postagem de fotos para nos alegrar nesses tempos de pandemia quando vivíamos livremente nas tantas aglomerações, celebrações, shows, etc. A vida em #tbt pode expressar a tendência psíquica de muita gente que abdica de viver o presente, de trazer a memória do passado para ser presentificada e passam a vida empenhando-se na retomada de um amor perdido, de uma amizade rompida, de uma vida que lhe parece um paraíso. Imaginam essas pessoas que aqueles momentos eram verdadeiras graças de Deus, contrapondo-se com o que sentem do presente como um verdadeiro inferno. Negam o presente, para viverem de um passado recriado e falsificado.

Na Igreja podemos mostrar algumas práticas religiosas que não buscam presentificar aquele passado, mas reconstruir o mesmo para que assim as pessoas possam se salvar. Porém nem sempre a lembrança daquele passado confere com o que de fato acontecia. Muitas vezes, a exaltação do passado encobre a covardia de enfrentar o presente e seus desafios. Assim se nega o caminhar do presente, as convocações para viver uma nova vida e investem tudo para restaurar um passado que só existe na imaginação, deturpada e deformada pelos interesses e desejos do presente.

A memória tem uma função constitutiva de nossa existência e não pode ser desprezada. O cuidado com essa dimensão humana nos torna ainda mais humanos, abertos à felicidade. Como Ló, é preciso livrar-se de uma realidade para encontrar o horizonte que Deus nos mostra à frente. O túmulo vazio não é lugar para permanecer chorando, mas um impulso para avançar.

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