Um final de ano muito marcante para o mundo católico e, de maneira especial, para os brasileiros tendo como fatos a morte do Papa Emérito Bento XVI, a morte de Pelé e a posse do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Tantas e fortes emoções e uma questão: sobre o que escrever e como fazer? Meu desejo era falar dos três em um mesmo texto, mas desisti dessa empreitada. Vamos iniciar nossa reflexão sobre a morte do Papa Emérito. Depois virão os demais fatos. A escolha reflete bem o que se carrega no coração. Portanto, fora de qualquer juízo moral ou político está situada a minha escolha.
O título do artigo é retirado das palavras do Papa Francisco proferidas em abril do ano passado no encontro com os jesuítas de Malta. Foi assim que ele definiu o Papa Emérito: “um profeta desta Igreja do futuro”. Como somos um pouco viciados em olhar o mundo em duas cores (branco ou cinza) e assim julgar as pessoas e os acontecimentos como foi nos últimos anos, canonizamos ou demonizamos os dois maiores personagens vivos da Igreja Católica, Francisco e Bento XVI. Vamos então olhar com mais atenção esse perfil conferido pelo Papa Francisco a seu antecessor. Essa definição nos instiga muito. Em que o Papa Francisco se apoia para falar dessa forma a respeito do Papa Emérito?
Como teólogo especialista J. Ratzinger esteve presente na realização do Concílio Vaticano II que é considerado o grande evento eclesial dos tempos contemporâneos. Algumas pessoas, saudosas de um passado, de maneira desleal e equivocadamente, negam os avanços desse Concílio e pregam um retorno aos tempos passados, achando que com isso a Igreja irá sobreviver às altas ondas da modernidade. Algumas dessas pessoas tentaram prender o Papa emérito Bento XVI nos cercadinhos tradicionalistas, desconsiderando a presença permanente de Deus na história e em sua Igreja. Uma Igreja que não se renova nem é histórica e nem é assistida pelo Espírito Santo como Mistério da Salvação.
O Papa Francisco, eleito pelo colégio de cardeais para implementar as reformas do Concílio Vaticano II, aponta alguns traços fundamentais de Bento XVI que são essenciais para a Igreja do futuro, caracterizada como uma Igreja menor, capaz de perder privilégios, humilde e autêntica. Esse era o desejo do colégio de cardeais que elegeu Mário Jorge Bergoglio. Nas palavras de Francisco: “Como bispo, Bento disse para nos prepararmos para ser uma Igreja menor”, mais espiritual, mais pobre, menos política, “uma Igreja dos pequeninos”.
A renúncia do Papa Bento XVI é resultado de uma virtude muito superior, a humildade. Suas forças não o ajudavam na reforma dessa Igreja como dizia logo após o Concílio para transformá-la pequena, recomeçando mais ou menos do início. Sem medo apontava o caminho que se vislumbrava: “…à medida que o número de seus adeptos diminui, a Igreja perderá muitos de seus privilégios sociais”. Será uma espécie de “sociedade voluntária, na qual se entra apenas por livre escolha”, e não por um costume social.
A tarefa das reformas exigidas pelo Concílio Vaticano II é complexa e exigente. E a primeira coisa que o Papa Bento XVI fez foi mudar as formas das finanças do Vaticano. É bom lembrar sua expressão forte, não comum em seu cotidiano: “Chega!” Sim. Chega de escândalos, de suspeitas, de mau exemplo, de vergonha. E deu início ao processo de transparência das contas financeiras do Vaticano contratando uma agência externa para auditagem, a Moneyval, publicando os balancetes ou relatórios.
A Moneyval é um Comitê de Peritos sobre a Avaliação de Medidas de Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo que monitora 47 estados membros estando ligado diretamente ao Comitê de Ministros do Conselho da Europa. A Igreja colocava-se nesse momento no mesmo bloco dos demais países europeus, sem privilégios, propondo-se cumprir normas internacionais de combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, comprometendo-se a melhorar seus processos de transparência interna. E assim foram desmoronando as suspeitas e as práticas não condizentes com a pregação, mudando estruturas e pessoas. Volta e meia encontramos nos noticiários situações obscuras em alguns projetos eclesiais pelo mundo a fora. Isso não condiz com a diretriz tomada por Bento XVI em Roma.
Também iniciou o enfrentamento dos casos de pedofilia no meio do clero, de maneira corajosa e humilde, pedindo perdão por tantos desvios ocorridos. A forma corajosa de enfrentar esse pecado abriu o caminho para o Papa Francisco seguir ainda mais firme, destituindo inclusive pessoas ligadas a si mesmo. Trata-se da maior crise da Igreja desde os tempos da Reforma. E o Papa Francisco muito sofreu vendo um de seus mais próximos colaboradores, o cardeal George Pell, sendo condenado pelo Tribunal de Melbourne, em março de 2019.
Outro ponto que não pode ser esquecido e na Arquidiocese de Vitória está sendo bem desenvolvido se refere à formação para o ministério da caridade. De todas as pessoas, padres ou leigos, que trabalham com os empobrecidos Bento XVI exigia que se fizesse uma profunda formação profissional e espiritual. A Campanha “Paz e Pão” nos mostra como esse desafio é tão importante e essencial nesse ministério.
Nesse caminho da solidariedade não se pode deixar de lado a contribuição do Papa emérito no campo da economia que chega ao pontificado atual sob a forma de “Economia de Francisco e Clara”. A Carta Encíclica Caritas in Veritae também conhecida como “encíclica econômica”, publicada em junho de 2009, aprofunda o tema da economia a partir da Doutrina Social da Igreja. Um dos pontos mais marcantes em minha percepção é a posição segura afirmando que toda escolha econômica é também uma escolha moral. Quando uma sociedade vive num sistema de confusão moral, fatalmente fará escolhas econômicas não apenas confusas, mas também equivocadas. Qualquer sistema econômico, capitalismo ou comunista, sobreviverá se tiver como base um forte sistema de valores morais.
Esses pontos nos parecem suficientes para mostrar como o caminho trilhado pelo Papa Bento XVI, iniciando nos tempos do Concílio Vaticano II e sendo um de seus maiores expoentes da teologia ali presente, tem seus desdobramentos no pontificado do Papa Francisco. Em 1970, o teólogo Ratzinger nos alertava para uma Igreja do futuro, simples e interiorizada, num mundo que verá o desaparecimento de Deus e as pessoas irão sentir-se sós, e essa mesma Igreja experimentará sua total e terrível pobreza. Contudo, é nessa situação de peregrina em meio do povo que a Igreja será descoberta como algo completamente novo, “como uma esperança, como uma resposta pela qual secretamente as pessoas sempre suspiraram, como pátria que lhes dá vida e esperança para além da morte”. Nesse caminho a Igreja reencontrará a sua essência e com plena convicção naquilo que sempre esteve no seu centro: “a fé no Deus trino, em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, na presença do Espírito até o fim do mundo”.
Joseph Ratzinger, Bento XVI e Papa emérito formam uma totalidade de pessoa que viveu construindo pontes de diálogo com a economia, com as ciências, com a filosofia, com o mundo, de maneira profunda e radical. Se houve momentos cinzentos é porque não era de outro mundo e suas últimas palavras “Senhor, eu te amo!” refletem e sintetizam toda a sua vida. Assim encerra sua vida fiel a serviço da Igreja. Encerra seu amor pela Igreja. Trata-se do mesmo amor devotado pelos apóstolos e testemunhado até a morte. Enterra-se um corpo, mas as palavras proféticas continuarão a ecoar pela história.
Edebrande Cavalieri