COMO NASCEU A CAMPANHA DA FRATERNIDADE?

1 novembro, 2023

As Dioceses com suas paróquias e comunidades iniciam no final de cada ano a preparação para a Campanha da Fraternidade do ano seguinte. Encontros, seminários, organização de grupos, tudo é cuidadosamente preparado para que o tempo da quaresma seja vivido de maneira ainda mais profunda. O tema – “Fraternidade e Amizade Social” – que nos propõe a Igreja é desafiador e vamos ter oportunidade de aprofundar em outros artigos. Hoje vamos refletir sobre o surgimento desse grande evento eclesial.

A Campanha da Fraternidade foi pensada desde o início no contexto da recepção das inovações do Concílio Vaticano II, das Conferências Episcopais de Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Portanto, está inserida como um Projeto de Evangelização e renovação da Igreja. Não é apenas campanha de arrecadação de fundos.

Em alguns anos as temáticas foram objeto de instrumentalização ideológica, em que algumas pessoas alegam a perda do sentido espiritual e litúrgico da Quaresma. E algumas chegam a atacar ou boicotar a Campanha da Fraternidade. Não estariam assim demonstrando sua escusa em assumir ações solidárias? Algumas lideranças religiosas vão caminhando fora da perspectiva sinodal de caminhar juntos e em comunhão. A vida do nosso povo não importa? Infelizmente, alguns católicos entram nessa onda, muitas vezes por falta de conhecimento.

Queremos aqui mostrar dois pontos que nos parecem fundamentais para entendermos as Campanhas da Fraternidade: iluminação bíblica e contexto histórico de seu nascimento.

A Campanha se desenvolve ao longo dos 40 dias da Quaresma e uma das práticas espirituais mais desenvolvidas é o jejum. O que é e o que significa essa prática? Qual sua fundamentação bíblica? No Livro de Isaias, capítulo 58 iremos encontrar qual o jejum que é agradável a Deus.

O texto bíblico é de uma clareza espetacular. “Que adianta jejuar, se tu nem notas? Por que passar fome, se não te importas com isso”?

O Senhor Deus, de maneira dura adverte: “A verdade é que nos dias de jejum vocês cuidam dos seus negócios e exploram os seus empregados. Vocês passam os dias de jejum discutindo e brigando e chegam até a bater uns nos outros”. Assim iremos encontrar pessoas que gritam aos quatro cantos da terra que estão jejuando, de barriga vazia, mas com os olhos enraivecidos, o coração petrificado, agindo na exploração do irmão faminto. E Deus alerta: “Será que vocês pensam que eu vou ouvir as suas orações”?

Desta forma, sendo a Quaresma também um tempo de jejum, é preciso que cuidemos para que essa prática não se torne nossa própria condenação, pois “não é esse o jejum que eu quero”, diz o Senhor. Fomos educados, no passado, a realizar práticas penitenciais de autossofrimento, autoflagelação, desligadas do agir propriamente cristão. Era um tempo de sacrificialismo e sem conexão com a vida prática. Qual o jejum que é agradável a Deus conforme o texto bíblico?

A descrição pormenorizada das práticas está baseada no conceito de justiça. O verdadeiro jejum se ampara no exercício da justiça. Então é preciso que soltem as pessoas que foram presas injustamente, que se alivie o peso que colocamos nos ombros de nosso próximo, que se garanta liberdade aos oprimidos, que se dê comida aos famintos, que se dê roupas aos nus, que se dê abrigo aos desabrigados.

Então temos que olhar o contexto histórico onde nasceu a experiência de solidariedade enquanto Campanha da Fraternidade, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. O que aconteceu de extraordinário ali?

É preciso retroceder até o tempo da II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos decidiram entrar no conflito. Então montaram em Natal (cidade estratégica) uma base militar enviando um contingente de soldados que elevou a população local em 20%. Da noite para o dia a cidade se transformou.

De maneira abrupta os espaços urbanos foram reorganizados, bares e cabarés superlotados com comércio em dólar, espaços de lazer, mudança na linguagem, incremento da gastronomia, enfim, a cidade de Natal explodia com esses novos rumos. Mas o pior estava para acontecer.

Terminada a guerra, toda essa população não brasileira também da noite para o dia desapareceu das ruas de Natal. O que deixou? Uma cidade em ruína e miséria, muitas mulheres com filhos ou grávidas. A fome rondando cada rua, cada casebre.

A crise social da região descambou para o caos social. Uma iniciativa eclesial de emergência surge. Dois padres, Nivaldo Monte e Eugênio Salles que pouco depois tornou-se bispo auxiliar de Natal, iniciaram um movimento bem amplo no campo social, urbano e rural.

Iniciava-se ali o Movimento de Natal que impulsionou o planejamento pastoral, a organização de sindicatos rurais, a formação de escolas radiofônicas que fizeram germinar as Comunidades Eclesiais de Base, e principalmente a Campanha da Fraternidade realizada durante a quaresma.

Em 1962 foi realizada na cidade de Natal. No ano seguinte a experiência ampliou-se para 16 Dioceses do Nordeste. Em 1964, os Bispos Brasileiros encamparam a Campanha da Fraternidade com texto aprovado em assembleia para o Brasil inteiro. No próximo ano iremos comemorar o 60º aniversário.

No contexto do Movimento de Natal, ainda cabe ressaltar a experiência na Paróquia de Nísia Floresta/RN. Em função da carência de sacerdotes na Arquidiocese de Natal, essa paróquia foi entregue por Dom Eugênio Sales para ser administrada pelas Missionárias de Jesus Crucificado, dando-lhes todos os direitos e deveres de vigárias paroquiais, exceto a administração dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia indo de 1963 a 1989. Era uma forma de a Igreja favorecer aos trabalhadores rurais condições para se tornarem protagonistas de seu destino.

Foi a partir do Movimento de Natal que a Igreja viabilizava daí em diante propostas de solução coerente com o pensamento da doutrina social, utilizando de seu prestígio para pressionar e sensibilizar as autoridades do país estimulando ações governamentais mais responsáveis. Nesse sentido, a Campanha da Fraternidade colocava em prática o texto bíblico descrito em Isaías 58 a respeito do verdadeiro jejum a ser concretizado durante a Quaresma. Não há dissociação entre fé e vida.

A Igreja saía em direção às periferias das cidades, especialmente de Natal; começava a desenvolver uma presença forte nos presídios; criava centros sociais para acolhimento das pessoas vulneráveis; desenvolvia o serviço de assistência a menores, especialmente infratores; e seu trabalho social alcançava os espaços rurais com Semanas Rurais em todo o Rio Grande do Norte. As escolas radiofônicas foram implementando educação de base especialmente nas áreas rurais. Foi muito destacado o trabalho da força jovem.

O Movimento de Natal contribuiu para transformações advindas do Concílio Vaticano II com a renovação das paróquias, renovação do ministério sacerdotal, renovação dos educandários católicos e seminários para formação dos novos padres e introdução da pastoral de conjunto.

Dessa forma podemos concluir que a Campanha da Fraternidade esteve iluminada desde seu início pelas Sagradas Escrituras, inserida no contexto histórico bem concreto das periferias geográficas e existenciais, e em plena sintonia com o Concílio Vaticano II e o Magistério da Igreja. A Campanha da Fraternidade não é apenas a coleta de doações, mas também projeto de evangelização que une fé e vida.

Edebrande Cavalieri

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