DIA DE FINADOS E OS CEMITÉRIOS

29 outubro, 2021

Edebrande Cavalieri      |

Todo ano celebramos, inclusive com feriado nacional, o Dia dos Finados no Brasil, momento em que nossa cultura nos conduz para os cemitérios, com flores, com velas, celebrando das mais diversas formas. É o dia dos fiéis defuntos e junto à sua lembrança se fortalece em cada pessoa a esperança, a fé e a caridade. Em muitas paróquias onde estão situados os cemitérios ocorre uma verdadeira “missão finados” com os cuidados pastorais mais adequados, muito além da tristeza e das lágrimas. Como surgiram esses lugares que até são chamados de “dormitório dos mortos” ou “cidade dos pés juntos”?

Hoje vemos cemitérios pertinho das Igrejas configurando-se como um verdadeiro museu a céu aberto, pois representa em suas sepulturas a história das famílias tradicionais, tanto a opulência como a pobreza. Porém, nos últimos tempos o que mais se observa é o crescimento de uma verdadeira empresa que cuida da morte, com os cemitérios despidos dos elementos religiosos. De lugares tão complexos e ricos, ou pobre quando localizados nas periferias das cidades, os cemitérios atuais são mais um grande campo jardinado, de silêncio, onde ainda se reza, mas sem aquele aparato arquitetônico de outrora. Como chagamos a isso?

Os primeiros cemitérios foram as catacumbas e durante as perseguições aos cristãos nos séculos I e II esses lugares também serviram para que eles celebrassem principalmente a eucaristia. Era comum também as visitas aos túmulos dos mártires e ali mesmo celebrar. Daí nasceu a prática de se levar uma relíquia do mártir na pedra d’Ara posta sobre os altares das igrejas até hoje.

A partir dessa experiência cristã muita forte, desenvolveram-se entre os cristãos o costume e o desejo do enterrado o mais próximo possível do túmulo dos mártires. Nasce aí a crença de que ao ser enterrado assim tão pertinho deles que testemunharam a vida com o martírio, cada pessoa teria lugar garantido nos céus. Isso cresce de tal forma que nesses lugares os cristãos empenharam-se para a construção de igrejas e grandes basílicas. Dessa forma, o cemitério tornou-se um solo sagrado. Hoje só os bispos são enterrados em sua catedral.

Em meio à cultura geral encontramos diversas religiões que cultuam os mortos, chegando ao ponto de construir templos com altares dedicados a eles. As pirâmides do Egito antigo representam cemitérios destinados aos faraós.  Não é algo exclusivo do cristianismo essa identificação dos cemitérios como espaço sagrado. Por detrás dessa experiência religiosa acreditava-se que essa proximidade garantia ainda mais a continuidade espiritual entre os dois mundos.

O cristianismo buscou sempre manter essa expectativa de proximidade entre vivos e mortos. Por isso, temos a primeira experiência de cemitério no interior das igrejas. Foi durante a Peste Negra na Idade Média que foi preciso alterar essa prática, pois o número de pessoas mortas era muito grande e as igrejas não comportavam mais espaço para sepulturas.

Nasce assim o costume de construção de cemitérios o mais próximo possível das igrejas. As camadas mais favorecidas da sociedade gozavam de maior privilégio na localização de sua sepultura. Os pobres acabavam sendo enterrados nas pequenas igrejas de periferia urbana, tendo apenas uma simples cruz de madeira com uma pequena lápide para a identificação da pessoa morta. Até hoje vamos encontrar essa periferia no mundo dos mortos entre os pobres. Por esse motivo temos muitos cemitérios localizados nos centros urbanos e outros mais afastados, até fora da cidade. Mesmo com a morte vamos encontrar a expressão concreta dos processos de exclusão social. O povo costuma dizer que morrer está caro! Essa é a mais pura verdade.

O século XIX representa uma grande mudança nessas práticas de enterrar os defuntos. As campanhas de higienização, especialmente para conter epidemias e pestes, foram estabelecendo novas regras para enterro e localização dos cemitérios. Esse lugar que ocupava tantos sentidos teológicos vai perdendo a dimensão da sacralidade. Busca-se então não mais a proximidade com os lugares sagrados e proximidade com pessoas santas, mas lugares altos, arejados, arborizados e fora do perímetro urbano.

Nesses tempos de pandemia da Covid-19 tivemos essa experiência traumática com mortos sendo enterrados de maneira rápida, caixões lacrados e sem presença de familiares e da comunidade. Como foi triste esse tempo! Como foi triste ver a abertura de sepulturas em lugares distantes e frios, num cenário de guerra. Esses lugares com centenas de sepulturas abertas aguardando as funerárias trazendo os corpos são muito semelhantes aos cemitérios de guerra.

Os movimentos filosóficos contemporâneos como o positivismo e o iluminismo deram novas formas de se pensar os cemitérios. A igreja começa a perder o controle desse espaço considerado sagrado. Os cemitérios vão se transformando em lugares secularizados, plurais, destinados a todos os que puderem arcar com os altos custos.

Nesse sentido, a Constituição republicana brasileira de 1891, momento em que se deu a separação entre a Igreja e o Estado, estabeleceu em seu artigo 72: “Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral e as leis”. Dessa forma chegamos à configuração atual dos cemitérios; alguns particulares organizados como empresas que o mantém e outros públicos administrados pelo poder municipal.

Em relação ao dia dos finados que está estabelecido no calendário litúrgico, a Igreja zela por esse dia como momento para prática pastoral. Desde a idade média quando se iniciou o culto aos mortos no Mosteiro de Cluny na França, a Igreja mantém um olhar para além da reza e do acender de velas.

Nos dias atuais, mesmo com cemitérios secularizados, encontramos uma preocupação pastoral da Igreja ou das religiões não apenas com o dia de finados, mas com todo o processo de morte, velório e enterro. O sentido da restauração da dor e da morte e a evocação dos valores da eternidade como o sentido último do caminho do ser humano nos mostram como esse cuidado pastoral tem atraído cada vez mais voluntários e agentes de pastoral.

Às vezes tenho a impressão que nesses lugares de tanto silêncio encontramos a oportunidade de ouvir o grito de dor, de sofrimento e das injustiças. O grito dos mortos não é fantasma que nos persegue nas noites escuras, mas a voz de Deus que nos pergunta sobre o que fizemos com os nossos irmãos que se foram. Desta forma, os cultos e celebrações tanto no dia dos finados como nos momentos da morte deveriam sempre nos colocar a pergunta: de que lado estivemos quando essas pessoas viveram nesse mundo? Pode ser que o nosso choro de hoje seja a confissão de culpa pela indiferença mantida em vida com essas mesmas pessoas.

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