Edebrande Cavalieri
Essa expressão, tão forte, foi proferida por Dom João Batista da Mota e Albuquerque, ao abrir as portas da Catedral de Vitória para abrigar mais de 500 pessoas despejadas que ocupavam uma área em Cariacica em 1982. Nesse momento, o Estado do Espírito Santo passava por profundas transformações socioeconômicas com a implantação de grandes projetos industriais e o aumento do êxodo rural. A grande Vitória ficou inchada, alargando a periferia e a pobreza.
Foi o momento em que na região de São Pedro, lugar escolhido pela administração municipal para depósito do lixo de Vitória, cresceu com as ocupações feitas por pessoas que corriam para o lixão, atrás dos caminhões coletores em meio aos urubus e cachorros. É desse período a produção de um Documentário dirigido pelo jornalista Amilton de Almeida intitulado “Lugar de Toda Pobreza”, que os mais velhos devem ter visto em colégios e Igrejas.
Nesse documentário, o testemunho de uma criança na época representa de maneira crua e cruel a forma de vida que ali se estabelecia e contextualiza um pouco a ação de Dom João Batista: “Eu era aquela garotinha que balança, com meus cinco, sete anos. A gente comia comida vencida. Como o lixo era todo misturado, não tinha separação como hoje, vinha lixo de hospital misturado com comida. E a gente comia ali, e eu lembro que eu engolia e quando sentia o gosto daquela comida era um gosto de mosca”.
A realidade capixaba estava se transformando rapidamente. As décadas de 70 e 80 viram o crescimento do número de pessoas sem moradia e sem trabalho e o lixo era uma forma de garantir a subsistência. A implantação de projetos como a indústria de celulose em Aracruz, a CST, Tubarão e outros grandes empreendimentos, acabou trazendo insegurança e violência dos mais diversos tipos. Nas periferias de Serra, de Vitória, de Cariacica e Vila Velha a situação era semelhante. Formam-se os bolsões de pobreza.
Assim a decisão de abrir as portas da Catedral para abrigar os despejados foi de grande coragem, e muito arriscada. E mostra como o Concílio Vaticano II marcou profundamente sua vida. Foi um dos propositores e signatários do “Pacto das Catacumbas” em 16 de novembro de 1965. Ao retornar após o Concílio, era bem claro o efeito do Concílio iluminando com sua luz a condução pastoral da Igreja de Vitória. O gesto expressava um grito profético: era preciso fazer caber essas pessoas na cidade! E para isso os despejados podiam contar com o apoio e o acolhimento da Igreja.
O Pacto das Catacumbas expressava um compromisso colegial sendo feitocom mais de 500 bispos que participavam do Concílio. Era um “Pacto por uma Igreja Serva e Pobre”, expressando assim um compromisso por uma “opção preferencial pelos pobres”. Com muita alegria, por ocasião do Sínodo da Amazônia, vimos um novo “Pacto das Catacumbas pela Casa Comum” – por uma “Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana”. Isso mostra como determinados compromissos eclesiais transcendem o tempo de sua realização e se vinculam uns aos outros, pois procedem de uma mesma fonte – o Evangelho de Jesus Cristo.
Abrir as portas da Catedral era muito mais que encontrar um abrigo para as pessoas despejadas. É lógico que se Dom João falasse com alguma pessoa, aqueles despejados teriam onde dormir por um determinado número de noites. Na verdade, a abertura das portas expressava de maneira simbólica e concreta o compromisso da Igreja com os mais pobres da sociedade.
Outros gestos também muito significativos foram marcantes no magistério de Dom João. Assim ainda em Roma na época do Concílio fez a doação de sua cruz peitoral de ouro e pedras preciosas para um grupo de pobres da Cidade romana. Depois dessa doação, ela passou a usar uma cruz peitoral feita em madeira.
Chegando em Vitória desfez-se do carro oficial com motorista, e aprendeu a dirigir usando um fusquinha que se tornou famoso. E também foi com esse carrinho que sofreu alguns acidentes sendo o mais grave em 1968 ao retornar de Santa Teresa tendo sofrido dezessete fraturas. São símbolos muito significativos de uma Igreja pobre e para os pobres.
Lembro com muita alegria quando eu estudava em São Paulo e Dom Paulo Evaristo Arns abria também as portas da Catedral da Sé para acolher as pessoas perseguidas pelo regime político de então. Muitos padres estavam presos e eram torturados, e Dom Paulo simbolicamente punha a Igreja como uma mãe acolhedora.
Assim as portas que se abrem guardam uma significação muito profunda. Não é preciso de templos suntuosos para abrigar e alimentar a fé das pessoas. Precisamos sim de uma Igreja acolhedora, samaritana, sempre de “portas abertas” para receber os despejados da sociedade, os rejeitados.
Cada cristão então se torna responsável pela abertura de portas da Igreja: a porta do acolhimento, a porta da misericórdia, a porta do perdão, a porta da comunhão. Temos um exemplo concreto em São Francisco de Assis que abriu as portas do próprio espírito tornando-se pobre para viver com os mais pobres.Jesus se viu despejado ao nascer do ventre de Maria. O desafio cristão está exatamente na abertura das portas, para que entrem os injustiçados, os despejados, os famintos, os sem tetos, os excluídos, os sem terras. O Natal se avizinha e ele representa a abertura da porta em que o Menino Deus se encarnou. E através dele os “despejados do mundo” puderam encontrar a vida e a salvação.