FRATERNIDADE E FOME: DESAFIOS À FÉ

8 dezembro, 2022

Em sua origem, a Campanha da Fraternidade se desenvolveu na Quaresma de 1962 reunindo a Arquidiocese de Natal e mais três outras dioceses. No ano seguinte, foram dezesseis dioceses participantes e com o impulso renovador do Concílio Vaticano II em 1964 ela tornou-se nacional.

Como o Tempo da Quaresma é marcado pelas práticas de jejum, a inspiração bíblica para a Campanha da Fraternidade desde o seu início se encontra no Livro de Isaías, 58. Ali está descrito o verdadeiro jejum, aquele que o Senhor Deus escolheu para o seu povo realizar. É de uma clareza indubitável. O que o Senhor deseja de seu povo não são as orações públicas e penitências sob a forma de flagelação, espécie de práticas religiosas alimentadas ao longo da história do cristianismo.

O verdadeiro jejum que é fundamento para a Campanha da Fraternidade indica como ações: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos, partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrar pelo caminho. Então o Senhor Deus responderá às suas súplicas. Quando vemos católicos conservadores pedindo que se “devolva a quaresma” é sinal que esse grupo carece muito de uma nova evangelização.

Dom Dario Campos, arcebispo de Vitória, no encontro de formação sobre a Campanha da Fraternidade para o próximo ano pediu que todos procurem entender a sua importância e que o contexto social do momento está em plena sintonia com seus inícios e ventos renovadores do Concílio Vaticano II, como acima mencionamos. Em que contexto atual a Campanha da Fraternidade pode ser inserida? O tema “Fraternidade e Fome” nos leva a olhar para qual realidade de modo a tornar nossos jejuns e orações quaresmais agradáveis ao Senhor?

Conforme dados do IBGE referente ao ano de 2021, divulgados no dia 01 desse mês, o Brasil apresenta um quadro de aumento da pobreza muito grande. Nos últimos dois anos a extrema pobreza praticamente dobrou de quantidade. São 62,5 milhões de pessoas que se situam abaixo da linha de pobreza equivalendo a 29,4% da população e 17,9 milhões na extrema pobreza equivalendo a 8,4% da população. O Banco Mundial considera como linha de pobreza a pessoa que ganha RS 486,00 por mês e extrema pobreza com RS 168,00 mensais. Conforme dados da FAO (ONU) no Brasil são 60 milhões de pessoas que vivem sem ter o que comer.

Diante desse quadro de “injustiça e pecado” como nos diz o Papa Francisco, que ações poderiam ser desenvolvidas de maneira urgentíssima além das práticas de solidariedade com as campanhas de doação de alimentos?

Parece-nos que três horizontes deveriam nortear governos, instituições sociais, instituições religiosas e Igrejas. A fome não decorre da falta de produção de alimentos, mas de estruturas injustas que levam à fome. Portanto, o primeiro ponto que deveria balizar as ações é no sentido de transformação das estruturas geradoras da fome. Nessa mesma linha de ação, são necessários processos de sensibilização fomentando políticas públicas que atendam a essa enorme população de famintos para que possam produzir e gerar renda. Somente auxílio emergencial (permanente) não irá mexer na estrutura geradora da fome.

Nesse sentido, a Campanha da Fraternidade dá um salto além da prática de doação incorporando ações eclesiais em prol de políticas públicas. Sem a pressão social, nossos governos infelizmente não irão agir com esse objetivo. E o terceiro elemento que poderia ser incorporado na Campanha da Fraternidade é a edificação das pessoas, a formação para solidariedade.

As instituições sociais, religiosas e políticas precisam agir de maneira integrada buscando adotar soluções inovadoras que possam transformar a forma como produzimos e consumimos os alimentos para o bem-estar das pessoas e da casa comum. Vimos nessa semana um quadro devastador das abelhas sendo mortas nesse tempo de florada dos cafezais em decorrência do inseticida usado nas lavouras. Sem abelhas, não haverá polinização. E sem polinização não haverá frutos, alimentos.

O Papa Francisco nos alerta dizendo que a morte pela fome é um assassinato, e como tal deve ser tratado como pecado. Ele não está sozinho nesse grito. A ONU apresenta um quadro mais apocalíptico ainda ao dizer que “estamos perto de uma catástrofe alimentar humana” e “estamos a um passo de uma pandemia de fome”. Não se trata de pessoas que vão dormir com fome, mas de seres humanos em condições extremas, em verdadeiro estado de emergência. São pessoas que literalmente passam fome e isso se chama “catástrofe humanitária e alimentar”.

O mais duro foi ouvir o Presidente do Brasil dizendo há dois meses atrás que “ninguém vê alguém pedindo pão no caixa da padaria. Você não vê”. Junto com ele há tantos brasileiros, inclusive cristãos e católicos, que fingem diante da realidade da fome. Alguns ainda falam de simples “insegurança alimentar” como se fosse uma questão rapidamente solucionável. Para a população negra e favelada das cidades a fome é a nova escravidão, um atentado à dignidade humana, um escândalo ético. A fome atinge o quadro da desigualdade social e racial.

O retorno do Brasil ao Mapa da Fome decorre do desmonte das políticas públicas dos últimos anos, da crise econômica, da pandemia da Covid-19 e da crescente desigualdade social. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e um dos maiores produtores rurais do mundo, porém com pouca disponibilidade de alimentos de qualidade para todos. Os negócios agrícolas produzem para a exportação, com preços alinhados ao dólar, e para isso recebem todo tipo de apoio governamental.

O Papa Francisco no Dia Mundial da Alimentação de 2021 nos dizia que a luta contra a fome exige a superação da lógica fria do mercado, a lógica fria dos negócios agrícolas, concentrada no mero benefício econômico e na redução dos alimentos a uma mercadoria entre muitas. A luta contra a fome exige um reforço cada vez maior em toda a cadeia produtiva seguindo uma lógica de cunho ético, de solidariedade além da perspectiva caritativa. Torna-se essencial desenvolver um mercado solidário, um negócio solidário.

Em 2020 por ocasião do Dia Mundial da Alimentação o Papa fez uma proposta bem concreta e que exigiria uma decisão corajosa dos governos do mundo inteiro que seria a constituição de um “Fundo Mundial” com o dinheiro que se gasta em armas e outras despesas militar tendo por objetivo a eliminação da fome e contribuir com o desenvolvimento dos países mais pobres. Teríamos assim um horizonte de mundo sem fome, vivendo em paz. As guerras aumentam ainda mais o quadro da fome no mundo.

Concluindo, podemos dizer que a fome é dos maiores desafios à fé cristã. “Porque, assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2, 26). Desta forma, o Tempo da Quaresma tão forte na liturgia cristã é também o momento em que a fé deve ser traduzida em obras que beneficiam o próximo, de modo especial o faminto, e assim essas mesmas obras possam glorificar dignamente a Deus.

Edebrande Cavalieri

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