Desde 1995, em paralelo às comemorações do 7 de setembro, a Igreja do Brasil nos convida para outro grito, bem distinto daquele proclamado às margens do Rio Ipiranga. Na verdade, ela nos convoca para ouvirmos tantos outros gritos que ecoam nas periferias existenciais e sociais. São 28 anos em que se faz ressoar pelo Brasil a fora o grito daquelas pessoas, abafadas pelos mais diversos modos. Tantas vezes elas nem tem mais forças para gritar, devido ao frio, à fome, às necessidades que está passando.
Esse ano temos um cenário bem mais complexo na realidade nacional. Tempo das campanhas eleitorais mais acirradas e momento em que o Brasil desde 2021 voltou ao mapa da fome que é a versão mais cruel da desigualdade em todos os sentidos, e não apenas econômica. Portanto, aqueles gritos que ecoavam nos idos da década de 90 voltam com mais intensidade. Clamam pela segurança alimentar.
Além disso, o país está programando um conjunto de eventos para comemorar o bicentenário da Independência proclamada por Dom Pedro I. Até o coração desse Imperador foi trazido pelo governo brasileiro. E a Igreja nos coloca a questão: 200 anos de (in)dependência. Para quem? Por que essa questão? Desde estudantes, cada pessoa teve a oportunidade de analisar de maneira crítica como ocorreu aquele fato histórico em 1822.
O filho do Imperador que governava o Brasil rebela-se contra o próprio pai e declara-se separado da metrópole. Causa sempre estranheza como esse primeiro imperador do Brasil, após abdicar do trono brasileiro, tornou-se e terminou seus dias como 28º rei de Portugal. Como assim? Temos um fato histórico que é suplantando por uma versão do mesmo fato, produzindo um imaginário que foi se impondo sobre o conjunto da sociedade brasileira.
Logo nos comparamos com outros países latino-americanos e vemos que o caminho daquelas pequenas repúblicas de colonização espanhola criou seu próprio processo de soberania nacional. O Brasil, ao contrário, parecia terra herdada por um filho da coorte. Para que houvesse o reconhecimento da soberania nacional o Brasil teve que pagar a Portugal o valor de 2 milhões de libras esterlinas que era a dívida que a metrópole tinha com a Inglaterra. Foi por pressão da Inglaterra que Portugal reconheceu a independência do Brasil. Estava bem claro nesse acordo que o nosso país estava encaminhando-se para um novo tipo de dependência, agora com a Inglaterra. Então faz sentido o uso do termo (in)dependência acima proposto pela Igreja.
Ao longo desses duzentos anos presenciamos o desafio enorme para a construção de um projeto de soberania da sociedade brasileira em que a dignidade de cada pessoa esteja sempre em primeiro lugar. Portanto, não se trata apenas de um momento de denúncia, mas de reflexão e busca de um caminho de esperança que nos alimente na caminhada. Não haverá soberania nacional com projetos que aumentam as injustiças sociais. Então o Grito pela Independência deixa de lado o ufanismo nacionalista e imperialista e se torna um grito pela justiça. Essa é a razão de ser do Grito dos Excluídos. O caminho deverá ser do coração do Imperador trazido, para os corações sofridos aqui deixados à mingua.
Assim, os gritos dos excluídos e das excluídas vão para as ruas desse país gritando não apenas contra a exclusão como momento de negação, mas também gritando e empunhando as armas da esperança, da força desses brasileiros que no dia a dia vão construindo a resistência e a sobrevivência. Os alimentos distribuídos por ocasião dessa caminhada são símbolos vivos da luta e da resistência dessas populações com a produção familiar.
Apesar de ser iniciativa da Igreja Católica, nascido no contexto da II Semana Social Brasileira da CNBB, o Grito dos Excluídos expandiu-se para outros âmbitos, com a adesão dos movimentos populares, religiosos e sindicais, e organizações comprometidas com as populações mais vulneráveis da sociedade.
São os excluídos os protagonistas do grito e cabe à sociedade como um todo ouvir suas dores, seus lamentos, suas dificuldades. O grito não é um movimento que vem de cima para baixo. Muito pelo contrário, é dos rincões mais distantes, das periferias sociais e existências que os gritos devem ecoar pelas ruas de nossas cidades, pelos espaços de nossas Igrejas. Assim nas próprias celebrações feitas haverá nesse dia um “grito litúrgico”. Como seria? Como nossas comunidades estão preparando as celebrações desse dia?
Nesse 7 de Setembro teremos assim outro sentido para o fato histórico, rompendo a versão oficial, pois a soberania é um processo a ser construído no conjunto da sociedade. Talvez tenha passado da hora de dar um basta nas comemorações das vitórias dos dominadores e ouvir as dores e sofrimentos das populações vencidas pelos canhões. Então o Grito do Ipiranga ecoará como um Grito de justiça e assim alcançaremos em definitivo a soberania nacional, a independência desejada e sonhada. O que importa não é o coração do Imperador, mas os corações sofridos e dilacerados pelas armas e pela fome.
Edebrande Cavalieri