Jogos para um espírito olímpico

28 julho, 2021

Edebrande Cavalieri

Estamos acompanhando essa grande celebração lúdica que teve origem na cidade de Olímpia, na Grécia, em 776 a.C. quando as cidades que formavam verdadeiros reinos selaram um acordo de paz ou trégua nas guerras para homenagear não apenas Zeus, o deus supremo do Olimpo, mas cada deus cultuado naquelas cidades. A paz, assim estabelecida, não tinha apenas uma dimensão política de acordo entre os reinos, mas também religiosa e lúdica.

A ideia de paz entre os povos prevalece até hoje compondo o chamado “espírito olímpico”, em que deveria preponderar a brincadeira frente à competição. O dia a dia já é de muita guerra. A paz deve oportunizar a superação do conflito e da disputa. Nas Olimpíadas de Tóquio um judoca da Argélia e outro do Sudão se negaram a enfrentar judoca de Israel. A Federação Internacional de Judô é muito radical na defesa do princípio fundamental da solidariedade entre os povos, mostrando total desacordo com a postura de rivalidade política transposta para a esfera esportiva. E o Comitê Olímpico Internacional deverá aplicar penalidades. É um mal sinal esse tipo de atitude.

Na história mais recente tivemos dois boicotes que ficaram famosos. Nas Olimpíadas de Moscou em 1980 os Estados Unidos impuseram um impedimento de 62 países de participarem do evento. Quatro anos depois foi a vez da União Soviética impedir a participação de todos os países do bloco comunista nas Olimpíadas de Los Angeles. Dessa forma, quando os jogos olímpicos não se realizam nas balizas da paz e da solidariedade entre os povos sinaliza-se para a existência de conflitos difíceis de serem superados. Não ficamos curados das epidemias políticas da Guerra Fria, do Apartheid, dos campos de concentração, dos conflitos raciais e culturais.

As Olimpíadas são uma festa envolta em símbolos e exemplos muito fortes. Os cinco aros entrelaçados representam os cinco continentes e pelo menos uma das cores desses cincos aros está na bandeira de cada Comitê Olímpico Nacional. Em todas as medalhas, cunhadas em tamanho regulamentar, está impressa a imagem da deusa grega Niké que personificava a vitória, a força e a velocidade. Era uma imagem de mulher que os romanos chamavam de Victoria. O capitalismo contemporâneo passou a utilizar esse mesmo nome para uma marca (Nike), verdadeira “heresia”.

Niké, na mitologia grega, representava uma entidade sagrada com qualidades extraordinárias, podendo correr e voar em grande velocidade, sempre carregando uma palma e uma coroa de louros. Era considerada uma deusa, fonte de boa sorte para todos os deuses, guerreiros e atletas, e por isso eles desejavam ter Niké a seu lado. Sempre estava ao lado de Atena, deusa da sabedoria. Por isso, era certa a obtenção da vitória. As instituições militares também passaram a cultuar essa deusa e construir grandes templos em sua honra. Niké era atenta para coroar sempre os vencedores com a fama e a glória, mas nem sempre era justa. Premiava sempre aquele que melhor sabia utilizar de estratégias. Assim, a mitologia grega se reveste de conteúdos antropomórficos, como esse de Niké, e expressa elementos da natureza humana sob a forma religiosa.

Mas nem tudo naquele tempo deve ser elevado e glorificado. As olimpíadas na Grécia também possuíam um lado excludente, pois delas não podiam participar os estrangeiros conhecidos como bárbaros, os escravos e as mulheres. Nas olimpíadas atuais também encontramos diversas lutas para romper preconceitos, discriminações, exclusões. Muitas imagens nos fazem ver a preponderância de determinado tipo socioeconômico. Vemos como se produz um país mercadoria que sedia os jogos, uma cidade mercadoria, um produto que se deseja vender de todo jeito. Perde-se o sentido de um lugar e um tempo onde se realiza a cidadania.

Esse nos parece ser o lado mais perverso desse evento. Cada atleta vem de uma grande luta para se manter e se preparar para os jogos, e acaba tendo que buscar apoio em empresas que vendem em seu uniforme. No caso brasileiro, sabemos que 80% dos atletas recebem a Bolsa Atleta criada em 2005. Os jogos tornam-se também expressão de um grande mercado. É preciso ter consciência disso e agir para que o espírito de solidariedade, de irmandade, de paz, prevaleça sempre sobre esse lado sombrio dos jogos.

O Papa Francisco saudou os jogos atuais realizados com dificuldades diversas em função da pandemia como “um sinal de esperança, de irmandade universal em nome da competição saudável”. E abençoou todas as pessoas envolvidas nesse grande festival esportivo.

Nos tempos atuais há uma ambiguidade entre dois tipos de jogos: esses olímpicos e os profissionais, com atletas que ganham muito dinheiro como no futebol e outros esportes. Eu, particularmente, gostaria de ver a inclusão de outros esportes brasileiros como o frescobol, o futebol de salão e a capoeira. Por que não estão incorporados aos jogos olímpicos? Como foi lindo ver a Rayssa Leal competindo com 13 anos de idade e ganhando uma medalha no skate! Penso também nos jogos Parolímpicos, não tão divulgados como merecem.

Os jogos tem uma função muito além do mercado e de competição envolvendo fortunas de dinheiro. Os jogos expressam também e muito a nossa maneira de ser e viver. O jogo é uma dimensão humana que se revela nos meios populares, nas peladas de várzea que não existe mais nas cidades, nas peladas de rua com bolinha feita com meia, nas praias, nos gramados e quadras. A gestão política de uma cidade pouco cuida de criar espaços para os jogos da criançada. É preciso garantir essa via de expressão da alegria e convivência. As brigas acontecem, mas logo tudo volta ao normal.

O cristianismo desenvolveu um significado transcendente do jogo, ao mostrar um Deus lúdico e uma Igreja lúdica. E passou a exaltar a criação como um grande jogo do Deus lúdico com a companhia das estrelas, dos planetas. Chegou-se a falar de uma “teatro da glória de Deus”.

Para São Tomás de Aquino Deus cria o mundo brincando, bem humorado, e isso nos leva a encarar a realidade também pelo viés da brincadeira, do humor. Tem algumas pessoas religiosas que, de tão sérias, despertam medo e até ameaça. A criação é a realização do puro prazer marcada pelo mistério. São Gregório de Nazianzeno que viveu por volta de 390 d.C. dizia que o Logos sublime brinca, enfeita com as mais variegadas imagens e por puro gosto e por todos os modos o cosmos inteiro.

Muito de nós fomos educados diante de uma imagem de Deus muito séria. O olhar de Deus representado no olho num triângulo que parecia vigiar tudo o que fazemos não condiz com a mistério divino. O Salmo 104 mostra um universo belo: “Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste. Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Nele passam os navios, e também o Leviatã, que formaste para com ele brincar”.

Com muita sabedoria, Tomás de Aquino dizia que “o brincar é necessário para levar a vida humana”. Entre nós, o filósofo Rubem Alves dizia que “Deus vê o mundo com os olhos de uma criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar”. Talvez esteja aqui o verdadeiro espírito olímpico de que tanto falamos e tanto precisamos. Parece-me que a imagem da atleta Rayssa Leal no skate expressa muito bem essa perspectiva olímpica. Sem a seriedade dos velhos competidores, ela se alegrava na brincadeira de voar obstáculos. Tem horas que me parece que estamos levando muitas crianças a perderem esse tempo de brincadeira alimentando e enriquecendo os produtores de tecnologias.

Enfim, estamos diante de um evento que nos remete a diversas dimensões da existência, não apenas humana, mas do universo inteiro. O jogo como brincadeira, como coisa sagrada, como momento lúdico de prazer na convivência solidária. É o momento de rompermos os muros dos conflitos ideológicos, raciais e políticos, para a construção de pontes. O jogo é uma grande ponte para a união dos cinco continentes e do universo como um todo. O jogo não apenas não torna humanos, mas também criaturas de Deus.

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