Na semana passada, especificamente no dia 12 desse mês, o governo do Estado do Espírito Santo assinou a Lei 11.610 de iniciativa do Deputado Marcos Mansur que é também pastor instituindo o Estatuto da Liberdade Religiosa tendo por objetivo a implantação de uma cultura de paz. Esse Estatuto defende não apenas a liberdade religiosa, como também a liberdade de consciência e de pensamento nas esferas pública e privada, defendendo a separação entre religião e Estado. Trata-se de uma questão de maior importância nos tempos atuais no mundo todo e, de maneira especial, em nosso país.
A questão da liberdade religiosa, desde o século XVII, tem se tornado um tema complexo e desafiador, inclusive alguns conflitos armados ocorreram em função das lutas religiosas como a Guerra dos Trinta Anos. O cenário brasileiro nos últimos anos está mostrando um movimento crescente de ações, inclusive violentas, contra determinados grupos religiosos. Não apenas há destruição de bens e espaços sagrados, como agressões a membros de determinadas comunidades.
Conforme o professor pe. Luís Correa Lima da PUC-RJ, no Brasil são centenas de terreiros de umbanda e candomblé que foram destruídos ou invadidos com fiéis ameaçados de morte, ou tendo de mudar de residência, especialmente em áreas urbanas controladas por traficantes que se dizem “evangélicos”. São famosas suas pichações nas periferias com a frase “Jesus é o dono desse lugar”.
No século XVII, John Locke publicou a “Carta acerca da tolerância” demonstrando como é preciso distinguir claramente as esferas dos assuntos civis da esfera das ocupações religiosas e espirituais, impedindo que uma esfera não se intrometa na outra. A aliança entre fé e política que fincou raiz no século IV quando o Imperador Constantino impôs a religião cristã como oficial de todo o império produziu ao longo da história muitas coisas em nada agradáveis a Deus. E Locke nos diz que Deus não outorgou a nenhum homem o direito de impor ou obrigar outros homens a aceitarem sua religião. Ninguém pode crer por imposição de homem algum.
Nos dias atuais, especialmente no Brasil, essa aliança entre religião e Estado, espúria em termos de regramento constitucional, tem ocupado os espaços do poder em todas as instâncias, e em algumas câmaras de vereadores tem momentos que os senhores edis parecem mais obreiros das Igrejas que representantes da sociedade. Práticas crescentes de perseguição aos que não comungam com sua pauta político-religiosa é cada vez mais presente. E com essa prática cria-se um clima cada vez maior de intolerância religiosa implícita ou explicita, com atos de desrespeitos, discursos de ódio, atos de violência física ou verbal contra adeptos, destruição de objetos sagrados e arrombamentos de templos religiosos. A intolerância se inicia de maneira bem sutil, quase imperceptível, com recriminação de outras religiões ou Igrejas, falas preconceituosas e quando os limites vão desaparecendo o cenário torna-se muito perigoso. Então a convivência social torna-se impraticável.
O apoio religioso para essas práticas de intolerância conduzidas pelo poder político faz mais estragos ainda na convivência social, pois dá uma aparência de respaldo doutrinário. Locke então questiona essas lideranças religiosas que aderem ao exército de intolerantes e questiona: “Por que esses líderes religiosos intolerantes com os diferentes permitem que a fornicação, a fraude, a violência e outros vícios, os quais, segundo o Apóstolo (Rm 1) cheiram obviamente a paganismo, grassem desordenadamente entre sua própria gente?”. É um ato de profunda hipocrisia sustentar a fé diante desses vícios praticados pelos próprios membros e seus líderes religiosos. “São artimanhas opostas à glória de Deus, à pureza da Igreja e à salvação das almas”. Locke expõe ainda mais tal postura hipócrita dizendo que “o adultério, a fornicação, a impureza, a voluptuosidade, a idolatria são obras da carne e os que as praticam não herdarão o Reino de Deus (Gl 5). E conclui: ‘Somente a tolerância está de acordo com o Evangelho”.
No mundo atual é cada vez mais preocupante o crescimento da intolerância religiosa. Em alguns lugares já estão incluindo no código penal questões de ordem doutrinária com a prática da blasfêmia, a apostasia e o proselitismo. Os interesses religiosos fundamentalistas vão extrapolando as paredes da instituição religiosa colocando o Estado a seu serviço. Junto a isso, tem crescido imensamente a interpretação de textos sagrados como a Bíblia numa perspectiva intolerante. O fundamentalismo religioso alia-se então ao fundamentalismo político em prejuízo da sociedade democrática e livre.
No Estado do Espírito Santo a instituição do Estatuto nos chamou muito a atenção, pois é o reconhecimento político da realidade crescente de intolerância religiosa produzida inclusive por agentes políticos. Trata-se de mais um mecanismo para garantir a proteção indispensável a todos os cidadãos, religiosos ou não. A constatação política do crescimento da violência religiosa levou a Assembleia Legislativa a aprovar um Projeto de Lei que agora transforma-se em Estatuto de defesa da liberdade religiosa, de consciência e de pensamento na esfera pública e privada, mediante a promulgação do Governo do Estado.
Quando os mecanismos do diálogo escasseiam, torna-se necessária a Lei. Nesse aspecto, dá-se um grande passo na constituição da cidadania religiosa. O mesmo Estado que concede a defesa do direito, também deverá doravante garantir seu cumprimento. Nesse caso, os mecanismos institucionais como o aparato policial darão suporte necessário para que seja garantido o direito de se prestar culto à divindade que a pessoa desejar. Portanto, quem ultrapassar os limites da convivência pacífica praticando intolerância religiosa poderá ser penalizado de maneira rigorosa.
Por fim, a instituição do Estado da Liberdade Religiosa garante também o direito de se criar novas igrejas, implantar novas religiões ou trazer cultos que estejam ausentes na sociedade, porém garantindo sempre a separação entre Religião e Estado. Essa garantia só faz crescer o exercício da democracia fortalecendo os laços de paz de que tanto precisa o mundo atual. Outro filósofo, Voltaire, no século XVIII dizia que a filosofia desarmando as mãos havia feito avançar a sociedade de maneira crítica e responsável, contudo o espírito humano esgotou-se em sua liberdade sendo levado pelo fanatismo.
As duas grandes pragas do mundo contemporâneo são o fundamentalismo e o fanatismo. Até mesmo as escolas estão sofrendo em sua arte cotidiana de ensinar as pessoas a serem livres diante de posturas ultrapassadas na história da civilização defendidas por personagens que lutam apenas pelo direito particular. Somente o pensamento livre conduzido pela filosofia e ciências críticas e o direito poderão garantir o fortalecimento de uma cultura de paz. É dever do Estado democrático garantir esse movimento em prol da convivência tolerante e pacífica. O Papa Francisco nos diz de maneira lapidar: “Acredito que tanto a liberdade religiosa quanto a de expressão são direitos humanos fundamentais”.
Edebrande Cavalieri