Memória de um povo missionário

29 outubro, 2020

Edebrande Cavalieri

Nessa última semana do mês de outubro dedicado à ação missionária da Igreja quero trazer um conjunto de lembranças de realidade que vivemos até pouco tempo atrás pelas terras do interior. Nunca esqueço a frase proferida pelo Bispo de São Mateus, Dom Aldo Gerna, que dizia ao chegar no norte do Espírito Santo: “Aqui se experiência um pedaço da África”. Para ele, missionário comboniano, a África tem um peso extraordinário. Sempre foi motivo de tantas vocações, desde o século XIX. E aqui, nas terras da Diocese de São Mateus, ele, quase sempre montado num cavalo para realizar as visitas pastorais, sentia que naquele momento aquelas capelinhas e paróquias por onde passava representavam um pedacinho do continente africano.

O pedacinho da África, na verdade, representava praticamente todo o Estado do Espírito Santo. Os imigrantes italianos que aqui chegaram para fazer dessa terra a sua nova pátria tiveram que se embrenhar pela Mata Atlântica. E foram estabelecendo pequenas propriedades para colonização com o plantio de café. Mas eles tinham uma missão mantida como compromisso ao deixarem a pátria italiana: manter aqui nas novas terras a fé cristã católica. E foram logo construindo pequenas capelas nas propriedades, dedicadas quase sempre ao santo de sua devoção familiar. Nas capelas maiores também organizaram o lugar para o cemitério. E se estruturaram com um conjunto de responsabilidades de forma praticamente autônoma, pois o padre responsável pela paróquia somente podia comparecer ali uma vez por ano, quando se realizava a grande festa, o momento das desobrigas pascais assim como era chamado, ou seja, era chegado o tempo da confissão e da celebração da Eucaristia.

O grande evento religioso era realmente a festa. O padre chegava na véspera, quase sempre montado a cavalo, debaixo de chuva ou de sol. A casa canônica servia para alojamento, praticamente apenas um colchão feito de palha ou de paina num cama de fabricação bem caseira. Agua encanada para banheiro nem pensar. Um quartinho ou privada, como era chamado o banheiro, servia para as necessidades fisiológicas. Sem geladeiras e fogão. Água para beber estava disposta numa moringa de barro. E a alimentação sempre era oferecida por algum morador mais aquinhoado do lugar. Cenário de muita precariedade em que o missionário padre tinha que enfrentar em sua vida pastoral.

A véspera era destinada às confissões gerais do povo, e especialmente das crianças para a primeira comunhão. Ainda o padre deveria dispor de tempo para o aconselhamento às pessoas. Parecia que nunca adoecia, pois não me lembro de nenhuma falta. A festa estava garantida desde muito tempo antes no calendário paroquial.

No dia seguinte, o grande momento da celebração da Eucaristia era marcado com três momentos de toque dos sinos. Ao terceiro sinal, todos deveriam se dirigir para o interior da capelinha. Ficava abarrotada de gente. As músicas sempre sem nenhum instrumento, mas muito bem cantadas. Eram hinos que se sabia de cor, pois grande parte da população era de analfabetos. Muitas vezes era o próprio padre que ensaiava as músicas. Os mais antigos devem se lembrar de Dom João Batista que chegava cedo para celebrar, mas antes queria ensaiar os cantos para a missa.

Após a celebração da Eucaristia era o momento das rifas, do leilão, da partilha de comida e bebida. Como não havia energia elétrica, até o guaraná ou fanta laranja eram vendidos e ingeridos bem quentinhos. Como esquecer a velha tradição da bebida feita de gengibre – gengibirra? Tudo era um sucesso, mesmo aquecidas pelo sol de verão. Somente nas festas se tomava refrigerante. Nesse momento de festa, se arrecadava um pouquinho de dinheiro para as despesas da capelinha e seu compromisso com a paróquia. Era na divisão e partilha do que se tinha na pobreza que engrandecia a festa.

Por fim, a grande procissão. Tudo bem ordenado. Crianças na frente. Depois as mulheres, e ao final os homens. Debaixo de um sol escaldante a procissão coroava a celebração com as devoções, especialmente ao padroeiro da capelinha carregado num andor. A bênção final e a certeza de que somente um ano depois seria possível esse encontro festivo da fé cristã. O final da festa continha um misto de alegria e tristeza, pois tudo retornaria à rotina dura de trabalho e luta contra todo tipo de intempérie.

Como continuar a luta diária, entre tantas doenças e dificuldades no resto do ano? Eis a questão tão central para esse povo missionário, para esse pedacinho de África. Que pastor estaria disponível nas capelinhas para conduzir as ovelhas, as pessoas desamparadas em suas doenças, a educação dos filhos, a catequese, a espiritualidade do caminhante? Nenhum contato mais era possível com o padre responsável. Além disso ele tinha uma imensidão de outras capelinhas a serem percorridas a cavalo o resto do ano.

O povo vai vivendo sua fé no dia a dia fazendo os cultos dominicais de maneira bem simples, quase sempre com a reza do terço. Ninguém faltava a esses cultos. Era o momento de usar a roupa mais bonita, única, para rezar. O calçado se levava nas mãos afim de não sujar de lama e não gastar o solado. Pertinho da capela, o riacho servia para lavar os pés e calçar os sapatos. E todos os moradores do lugar se encontravam na capelinha para rezar todos os domingos e dias santos. De maneira bem própria. Sem ritos. A fé guiava as orações e essas fortaleciam a fé.

Mas a semana parecia muito longa. As dificuldades eram tantas. A falta de chuva punha a colheita a se perder. A quem recorrer? As doenças também não davam trégua? Não havia médico, assim como não havia padre. A quem recorrer?

Com a falta de chuva que secava as plantações a devoção mais presente era fazer procissões, levando água nos baldes para derramar aos pés do cruzeiro fincado no topo de um morro de difícil acesso. Penitência, fé, e esperança em Deus que mandasse chuva.

Assim vai se criando no meio do povo um conjunto muito bonito de devoções populares. São as devoções do povo missionário. Tantas novenas foram se desenvolvendo de acordo com as necessidades. A relação das mais conhecidas é bem grande. Destaque especial para Nossa Senhora da Saúde, São Sebastião, São Geraldo Majella, Santa Rita, Santa Luzia. Enfim, hoje podemos dizer que ao olharmos para esse conjunto de devoções do povo se consegue entender melhor as raízes da fé. Até quando isso há de permanecer?

O êxodo rural para as cidades representou um duro golpe para esse conjunto religioso. Em muitos bairros das grandes cidades ainda se mantém determinadas devoções quase como uma força de manter a memória. Não é saudosismo. A memória da escravidão no Egito dava força para o caminhar no deserto para o povo hebreu. Aqui a memória das lutas pelo interior desse pedacinho de África ajuda e alimenta a fé que se mantém no espaço urbano.

Hoje, percorrendo as terras do interior do Estado, temos a oportunidade de ver muitas capelinhas, já abandonadas, no meio da capoeira. Outro dia nessa pandemia fiz um percurso onde meus pais andaram como meeiros e voltei triste. O abandono de tudo e de todos. Até as estradinhas parece terem ficado mais precárias.

Penso que essa memória não poderia ser perdida. Representa uma história de fé e vida muito grande de nossos antepassados. Como preservar? A perda da memória é uma doença muito triste. Não se pode nunca perder a memória missionária que nos liga à vivência da fé. Nossa terra já foi um pedacinho de África. Ou continua sendo ainda terra de missão? O que nos une em termos de memória missionária com os povos da região amazônica? Como não reconhecer nossa comunhão com a memória nas terras capixabas, com a Igreja irmã de Lábrea aqui na Diocese de Vitória, com as Igrejas da Amazônia? A memória de um povo missionário nos leva para a “Querida Amazônia”.

Encerra-se o mês missionário deste ano, mas a memória missionária deveria nos alimentar e fortalecer em nosso compromisso com outras capelinhas, comunidades e paróquias onde ainda o panorama é semelhante ao que nossos antepassados viveram por aqui. Quem sabe ainda o missionário não tenha que percorrer caminhos a cavalo! Com barco, na região amazônica, é praticamente certo. No ano passado, a Igreja de Vitória enviou seus diáconos para um estágio pastoral em Lábrea, na Amazônia. Foi um fato muito significativo para a Arquidiocese. Os relatos daqueles diáconos, hoje padres, devem servir para outras experiências semelhantes, inclusive com o envio de leigos e leigas missionárias. O mês missionário termina, mas o chamado de Deus se faz a cada batizado. A Igreja conduzida por Francisco se define como “Igreja em saída”, jamais fechada sobre si mesma, autorreferente. Um Igreja franciscana, simples, pobre, acolhedora e missionária.

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