Edebrande Cavalieri |
A fumaça branca que apareceu nos céus do Vaticano no dia 13 de março mostrava há oito anos como Deus age na história. Do fim do mundo, para o mundo! O primeiro papa filho do Concílio Vaticano II tem sua origem em uma das periferias geográficas. Então o mundo passa a partir daquele momento ver, sentir, ouvir, encantar-se e sentir-se convocado para caminhar junto com esse homem que ousou chamar-se de Francisco. Sim. Foi uma grande ousadia, pois até hoje nenhum escolhido assim foi chamado na condição de Papa.
Num discurso de quatro minutos nas congregações gerais antes do conclave, num momento em que outros nomes eram fortes candidatos inclusive o Cardeal brasileiro Dom Odilo Scherer, ele apresenta quatro pontos que considerava importantes para nortear a escolha do futuro papa. E colocou como título desse discurso uma frase impactante do Papa Paulo VI: “A doce e confortadora alegria de evangelizar”. Oito meses depois de sua eleição ele publicava a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, que representa o programa de evangelização que ele conduzirá ao longo de seu pontificado. Não era um plano estratégico de governo da Igreja e aqui reside a força e os desafios de seu pontificado.
Oito anos depois poderíamos descrever aqui os principais pontos do seu Magistério e do seu Governo da Igreja. Poderíamos falar das reformas econômica e financeira implementadas, dos desafios enfrentados principalmente em relação aos abusos sexuais, das viagens apostólicas realizadas, das críticas recebidas, do cuidado com a criação, do Sínodo da Amazônia, do Jubileu da Misericórdia, do Dia Mundial dos Pobres e tantas outras ações.
Ao contrário prefiro olhar para as trilhas que ele foi apontando, abrindo a cada momento novas clareiras para a evengelização, e nos convidando para seguir com ele. Ele está sempre empenhado em nos mostrar mais trilhas. Em pleno tempo de tristeza e tanta dor provocadas pela pandemia, o timoneiro nos convida a “pedir ao Senhor a graça de não ter medo da alegria”.
Voltando àquele discurso de quatro minutos antes da eleição, Francisco sintetizou o espírito que penetrava na consciência daqueles cardeais que viriam a elegê-lo. Ele dizia que era preciso avançar para uma Igreja que saísse de si mesma e caminhasse para as periferias geográficas e existenciais. Manifestava naquele momento que era preciso romper com uma visão de Igreja autorreferente e dizia: “Essa Igreja quer Jesus dentro de si e não o deixa sair”. Sim. Jesus assim parece ser prisioneiro da própria Igreja. E acrescenta que Jesus não está à porta batendo para entrar, mas socando a porta para sair.
A Igreja autorreferente não se dá conta que não tem luz própria, dando lugar a esse mal tão grave que é a mundaneidade espiritual, ou seja, viver para se dar glória a si mesma, que vive de si, em si e para si. Naquele discurso Bergoglio dizia que as reformas tão necessárias que desde o Papa João Paulo II vendo sendo objeto de necessidade deveriam ser iluminadas por essa via, de uma Igreja em saída, alegre, não afetada pelos males mundanos e que tivesse como objeto a salvação das almas.
E, no quarto ponto ele apresenta o perfil do futuro papa: “um homem que, a partir da contemplação de Jesus Cristo e da adoração a Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si rumo às periferias existenciais, que a ajude a ser a mãe fecunda que vive da doce e confortadora alegria de evangelizar”.
Francisco nesses oito anos se apresentou como peregrino, abrindo trilhas, apontando outros caminhos, mas sempre conduzido pela alegria do Evangelho. Nessas trilhas podemos encontrar lindas cachoeiras, paisagens maravilhosas, novos horizontes. É preciso fugir dos atalhos que são buscados pelas pessoas que não se importam na caminhada em conjunto. Alguns analistas apontam que Francisco está comprometendo seu pontificado com uma “virada profética”, uma espécie de “pontificado messiânico” que muda a própria direção da histórica, uma espécie de “sinal dos tempos”. A “Igreja em saída” não é a reprodução dos grandes movimentos missionários do passado, mas a saída da Igreja de si mesma. E isso está mexendo com os tradicionalistas que buscam algum motivo para desqualificar as ações pastorais do Papa.
As trilhas abertas por Francisco são sonoras até parecendo trilhas de grandes filmes e que permanecem ao longo do tempo. São trilhas que jamais poderão ser esquecidas. Existe o roteiro que deve ser seguido, mas é a trilha sonora que vai dando sonoridade, beleza, encantamento. Muitas trilhas sonoras tornaram-se verdadeiros hinos, verdadeiras obras musicais. Essa trilha pontifícia nos fortalece na alegria de evangelizar.
Assim também os caminhos percorridos por Francisco estão cheios de sonoridade, de beleza, de encantamento. Cada momento é uma exaltação da alegria de evangelizar. O roteiro duro que deve ser seguido fica leve ao som da trilha franciscana.
A trilha é um caminho possível com sonoridade e leveza. Em cada parada ele nos brinda com um novo movimento musical ou um sentido de direção mais leve e vivencial. As trilhas, sejam elas musicais ou para caminhar, sempre nos animam na caminhada. Tantas vezes se torna duro seguir a norma seca, dura. Mas a sonoridade evangélica de Francisco torna a vida cristã mais bela, mais alegre, mais livre. É preciso cuidado com a imposição de peso à caminhada das pessoas. Trata-se da rigidez tão temida pelo timoneiro das trilhas. A estrada de monótona e dura deve abrir-se ao frescor das novas paragens. Não permite mudar o cenário, mudar os sons. Tantas vezes a Igreja impôs como caminho único a dureza e tantas pessoas acabaram abandonando o percurso, parando na primeira estação. O medo de se perder nas trilhas, onde o pastor sente o cheiro de suas ovelhas que pastam nas pastagens verdejantes ou mato seco, acabou tornando muitas vezes a vida eclesial muito dura e monótona.
Francisco caminhante e peregrino nos mostra em suas trilhas que o percurso é longo, mas podemos encarar cada passo e cada obstáculo com muita leveza e alegria. E ele mesmo vai mostrando no percurso como essas trilhas nos presenteiam com lugares e detalhes deslumbrantes que não conheceríamos de outra forma. Não quer que ninguém pare na primeira estação. Chama a cada um, mesmo quem não seja católico ou cristão, e garante que o caminho para Deus é de uma beleza insondável. Francisco deseja que todos os homens possam desfrutar das paisagens deslumbrantes que se mostram nas trilhas, que todos possam banhar-se deliciosamente nas cachoeiras refrescantes, ou mesmo numa praia deserta, sentir a neve numa geleira fantástica. Cada pessoa pode sentir a presença de Deus na criança, numa pedra no meio do caminho, ou numa flor supercheirosa, num inseto desconhecido, num pássaro que voa.
O caminho rápido nem sempre é compatível com o Evangelho. Francisco nos garante que é preciso mais rapidez para atingir as periferias. São as trilhas, não os desvios que nos fazem chegar a elas. A beleza do Evangelho pode ser sentida por caminhos mais fáceis, menos condenatórios, menos excludentes.
Francisco nos mostra que não temos apenas as estações para parada e descanso, sempre obrigatórias, com tempo contado. Pelas trilhas de Francisco podemos parar o tempo que quisermos para contemplar ainda mais as belezas que encontramos pela frente. Podemos parar ainda mais tempo para esperar as pessoas que andam mais devagar ou que pararam para um tempo de êxtase.
Então cada homilia feita, cada palavra pronunciada, até uma simples pergunta se o “nosso coração está em paz” nos toca na alma. Para o encontro com Deus parece-nos que essa seja a primeira condição. É preciso estarmos em paz. É preciso viajar leve pela vida. É preciso vivenciar a mansidão evangélica, característica do cristão.
Mas a trilha também nos retira da zona de conforto. Muitos acham que basta entrar no trem, sentar nos bancos, fechar os olhos para tudo, e esperar chegar ao final. Mas o que Francisco nos propõe é que saiamos dessa zona de conforto. Então vai sentir calor ou frio, vai suar, vai poder pisar na lama, poderá até escorregar. Somente nas trilhas podemos encontrar-nos em nossa casa comum. Então iremos encontrar rios caudalosos. E também pequenos córregos. E vamos perceber que para atravessar teremos que construir pontes. Passar para o outro lado exige esse esforço. E sozinho não vamos construir nem uma pinguela, quanto mais uma ponte. Vamos juntos dando-nos as mãos nas diversas travessias.
Por fim, Francisco concretiza um caminho que desde o Concílio Vaticano II é apontado e seu antecessor, Bento XVI, registrou de forma brilhante em sua primeira Encíclica Deus caritas est. Deus é amor e “só o amor é digno de fé”, conforme nos falam os evangelistas. O percurso em trilhas demonstra sua forma de entender a vida e a fé, na simplicidade, na bondade, na solidariedade. A reviravolta que Francisco está dando na Igreja está apoiada no grande Catecismo que é o Concílio Vaticano II, que coloca a Igreja na concretude de ser a “luz do mundo”. Como nos diz São João: “Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos”.