Nessa semana o Papa Francisco retoma suas viagens internacionais, mesmo em cadeira de rodas, com um gesto idêntico ao que fez São João Paulo II em 2000 quando pediu um ato de coragem e humildade em vista da purificação da memória diante das faltas que foram cometidas por pessoas que levavam o nome de cristãos, e por Bento XVI em 2010 quando apontou a necessidade penitencial decorrente da gravidade dos abusos de menores.
Agora o Papa Francisco procede o roteiro penitencial tendo em vista as vítimas das “Escolas Residenciais” que totalizavam 139, administradas por diversas ordens religiosas católicas, Igreja Anglicana, Igreja Presbiteriana e Igreja Metodista no Canadá que tinham por objetivos nos dois séculos passados, XIX e XX, utilizando métodos de instrução e educação através de duras disciplinas, separar crianças e jovens indígenas de suas famílias, em condições precárias de saúde, má alimentação, rigidez e com a dureza de métodos pedagógicos. Tratava-se de eliminação da identidade cultural e espiritual das crianças formando uma nova sociedade integrada ao mundo cultural branco, cristão.
Essas “escolas residenciais” eram financiadas pelo governo do Canadá e administradas pelas Igrejas e tinham por objetivo a “integração” das crianças indígenas. Segundo o antropólogo Eric Simons “os danos causados pelo sistema de Escolas Residenciais Indígenas, a violência individual e sistêmica, persistem no presente. O trauma é intergeracional, e as paisagens indígenas deste país estão povoadas por sepulturas de crianças desaparecidas”. Trata-se de um complexo problema que envolve num grande escândalo o governo canadense e as Igrejas Cristãs.
Uma “patologia teológica” serviu de base para justificar a adoção desses métodos educativos. As centenas de mortes em sepulturas não identificadas demonstram um cenário obscuro e vergonhoso. Por outro lado, cabe perguntar por que esse cenário foi mantido até 1996 quando foi fechada a última escola residencial? Por que uma escola desse tipo foi montada na Ilha Kuper presenciando dezenas de crianças mortas tentando fugir pelo mar daquele lugar?
Hoje temos os povos indígenas daquele país buscando o reconhecimento dos danos que foram feitos nos internatos administrados por católicos e o Papa Francisco, num esforço extraordinário indo ao encontro para pedir perdão. Trata-se de um processo de reconciliação nada fácil. Como compreender o papel e o objetivo do governo canadense patrocinando essas escolas residenciais? Que crenças e práticas contribuíram para que a Igreja desse seu aval nessa empreitada educativa conhecida agora como uma “tragédia” ou um “genocídio”?
O caminho de reconciliação apontado pelo Papa Francisco nessa viagem e que deve servir de exemplo para todos os católicos daquele país e do mundo começa pela escuta da experiência daqueles alunos indígenas que sobreviveram bem como ouvir suas famílias. Além disso, há que se ter coragem para aceitar os desafios contínuos para a expiação do pecado cometido.
O projeto político do governo canadense ao longo desses dois séculos era integrar as crianças indígenas para que tivessem o máximo da influência dos pais retirada. Portanto, era preciso afastar as crianças das famílias e colocá-las nessas escolas industriais de treinamento central, um verdadeiro campo de internato “educativo”. Ali elas deveriam adquirir os hábitos e os modos do pensamento dos homens brancos. Também recebiam nessas escolas uma educação cristã que expurgava de sua experiência religiosa os rituais espirituais culturais e nativos de seus povos indígenas.
Se isso não bastasse, as condições sanitárias e de alimentação completavam o quadro de horror. Os prédios eram de péssimas condições, com péssima ventilação, com alimentação precária e com pouco ou nenhum cuidado de saúde. Tuberculose, varíola, sarampo e gripe tomavam conta dos espaços “educativos”.
A Igreja católica através de algumas ordens religiosas não está sozinha nesse cenário macabro, porém era a maior responsável por quase 130 escolas. Já foram feitos diversos pedidos de desculpas nos últimos anos. O Papa João Paulo II foi o primeiro a fazer isso em 1984 quando visitou o Canadá. O papa Bento XVI desculpou-se perante indígenas que foram ao Vaticano em 2009. E o Papa Francisco por duas vezes pediu desculpas: em 2018 quando esteve na Irlanda e em 2021 que recebeu uma delegação de anciãos.
O quadro atual mostra que esses pedidos de desculpas parecem não serem suficientes. Talvez seja necessário ir mais a fundo com investigações rigorosas para se saber qual o grau de cumplicidade das ações cristãs dessas Igrejas na educação dada nessas escolas. Conhecimento investigativo e avaliação crítica são parte desse caminho. Sendo uma peregrinação penitencial, trata-se de reconhecimento do pecado cometido.
Um parêntese nesse fato precisa ser feito, para que não nos achemos melhores que todo mundo. É preciso ter cuidado com as “teologias patológicas” que são produzidas ao longo da história. Hoje temos presenciado o crescimento desse desvio em alguns “doutores” em teologia, que pregam como se suas palavras representassem as palavras da salvação. Só para citar um exemplo de “teologia patológica”, em 1455, o Papa Nicolau V promulgou a “Doutrina do Descobrimento”, segundo a qual nenhuma terra descoberta seria alguma coisa se não fosse nomeada e ocupada por cristãos, com o privilégio europeu no coração da Igreja. Ainda mais: essa doutrina resguardava à Igreja de qualquer pecado, pois ela se constitui como santa, não podendo pecar. Por outro lado, o Papa Paulo III em 1.537 advertia que os índios que estavam sendo descobertos pelos cristãos não deveriam de forma alguma ser privados de sua liberdade e da posse de seus bens, mesmo que não tivessem a fé de Jesus Cristo.
Segundo alguns testemunhos dessa história recente, o governo canadense pagava muito mal para a manutenção cristã dessas escolas. Se de um lado temos a grande preocupação do Papa Francisco, herdeiro dos ideais missionários da Companhia de Jesus, com o nó histórico do colonialismo e à mistura adulterada entre evangelização e espoliação das culturas originárias, por outro lado é preciso não amenizar o papel político exercido pela cultura branca através do governo canadense. Sem uma investigação autônoma internacional mediada e conduzida pela ONU dificilmente virá à tona as falcatruas envolvendo aquela monstruosidade educativa.
As escolas industriais residenciais foram implantadas como projeto de governo contido no Ato Indígena de 1876, tornando obrigatória a educação nessas escolas de todas as crianças indígenas. Ao todo foram obrigadas à internação em torno de 150.000 crianças, em escolas construídas o mais longe possível de suas residências, para que se limitassem as visitas dos familiares. Era um projeto compulsório de educação indígena. Muitos dados que poderiam comprovar as práticas adotadas foram destruídos, inclusive o número de mortes. Poderia estar entre 3.200 a 30.000 mortes. Muitas sepulturas estão envoltas no anonimato, outras tantas nem foram ainda encontradas.
Internamente no Canadá foi criada a Comissão de Verdade e Reconciliação para investigar a verdade sobre essas escolas, reunindo até o momento mais de 7.000 declarações de sobreviventes. Em 2015 essa Comissão transformou-se na criação do Centro Nacional para a Verdade e Reconciliação, concluindo que aquele sistema educacional equivaleu a um “genocídio cultural”. Em 2021, milhares de sepulturas não identificadas foram descobertas, e muitas atrocidades ainda poderão vir à tona.
A viagem do Papa Francisco como peregrinação penitencial ao Canadá não apenas chama para um pedido de desculpas, mas clama pela verdade histórica que dói. Dói muito para o mundo cristão. Muitos não gostam de ver a verdade, e preferem se preocupar com as vestimentas litúrgicas e as doutrinas contidas no catecismo. Ainda hoje há muitas pessoas que trabalhavam nessas escolas. Onde estariam? Investiram tantas forças com a intenção sincera de servir ao Evangelho e às populações indígenas e agora são condenadas aos esconderijos da história. Nem sempre as críticas e as generalizações são justas. Essas pessoas também sofrem muito desse percurso feito, acreditando que estariam a serviço do Evangelho. A patologia religiosa subverteu a verdadeira fé.
Temos então um preço penitencial que deverá servir para a purificação da Igreja, pois em muitos lugares há práticas semelhantes não condizentes com o Evangelho. “Voltes e não peques mais”. É muito fácil montarmos um tribunal na história para condenar as pessoas do passado, como se nos dias que se seguem fossem as mil maravilhas. Temos “marcha para Jesus” seguindo com carro exibindo arma. Qual a diferença? Ainda tem processos educativos violentos em curso, práticas penitenciais e de autoflagelação estranhas ao Evangelho. A peregrinação penitencial não nos isenta da penitência comum. Somos corresponsáveis pelo pecado histórico, sempre. Precisamos exames de consciência bem sinceros para que nossa penitência seja purificadora, redentora.
Edebrande Cavalieri
Foto capa: Vaticano News