A pandemia da Covid-19 trouxe algumas demandas centrais para a sociedade brasileira, chegando bem antes da efetivação de políticas públicas, especialmente relativas à educação, saúde e alimentação. A Igreja Católica unida a outras Igrejas cristãs e até religiões não cristãs arregaçaram as mangas com diversas campanhas para o enfrentamento da fome assistindo famílias com cestas básicas. Era bonito ver os bancos das Igrejas repletos de cestas básicas.
Ao mesmo tempo, a Igreja incentivou cristãos e beneficiários da campanha para fortalecerem o movimento em prol de políticas públicas, reveladas em sua fragilidade na chegada da pandemia. Completando a mesma campanha está o movimento em torno da formação e espiritualidade, objetivando alargar consciências em vista da compreensão de que o auxílio emergencial com a entrega de cestas básicas envolvendo os grupos e paróquias necessita de uma visão crítica com um conhecimento sistematizado que leve as ações solidárias bem além da dimensão caritativa.
Tem início assim no dia 04 de junho, sábado, o terceiro bloco de formação tratando em perspectiva história da “Igreja e os desafios da ação social no contexto brasileiro”. Todo o processo formativo deverá preencher uma carga horária de 60 horas, sendo quatro horas em cada sábado, conforme cronograma programado pelo Vicariato para a Ação Social, Política e Econômica. Entende o grupo que conduz essa campanha que é preciso não apenas levar cestas básicas, mas ter consciência e conhecimento para ajudar as pessoas na tomada de consciência sobre os novos passos nos territórios em que se inserem as famílias e comunidades empobrecidas.
Trata-se de uma formação para o fortalecimento das ações emergenciais, mas também de experiência mística com uma espiritualidade mais enraizada na realidade e envolvimento político de fortalecimento dos agentes potencializando sua ação. Um dos objetivos da formação ora proposta é a compreensão do papel histórico da Igreja Católica na transformação da sociedade brasileira e o papel dos cristãos nas lutas por mudanças locais e globais.
Ao longo da história do catolicismo brasileiro esses três eixos foram sempre os maiores desafios. Ações emergenciais têm tido relativo êxito face à grande sensibilidade social. O empenho caritativo esteve presente desde os inícios de nossa história. Como se constituíram a espiritualidade desenvolvida entre nós e o empenho na transformação das realidades dos empobrecidos?
O catolicismo que chega ao Brasil em 1500 com os portugueses está atrelado aos compromissos políticos estabelecidos entre a Igreja Católica e o governo português, conhecido como Padroado. Essa aliança decorria do avanço da Reforma Protestante pelos países europeus. Nesse sentido, Portugal e Espanha com suas colônias preservaram seus Estados na penetração do movimento reformador europeu.
Em razão disso, quem conduzia a Igreja no Brasil era a monarquia portuguesa. Assim as necessidades pastorais eram determinadas pela conjuntura política e não pelo apelo missionário de cunho evangélico. Por isso, os ciclos econômicos (pau-brasil, açúcar, outro e mineração, São Francisco e Amazonas) determinam verdadeiros ciclos missionários. A Igreja fica presa em sua ação pastoral e a serviço do desenvolvimento colonial.
Sabendo que a Igreja sempre contém em si mesma a função de mistério de salvação, nota-se que muitos missionários exerceram seu trabalho evangelizador quase sempre desvinculados da instituição; iam percorrendo o território nacional pregando, ensinando a rezar, testemunhando uma vida ao lado dos empobrecidos.
Também é preciso reconhecer o trabalho evangelizador dos eremitas como Pedro Palácios aqui no Espírito Santo. Evangelizava com o testemunho de pobreza, rezando o terço com os mais pobres da sociedade, evangelizando com a própria vida. Mas também temos que reconhecer o grande papel dos catequistas, dos rezadores, do povo simples que procurava servir a Deus em suas devoções. Dizia-se que era um catolicismo de “muita reza, pouca missa, muito santo, pouco padre”. Até hoje temos um catolicismo marcado por devoções, por peregrinações, promessas, por festas em santuários como o da Penha.
O Padroado aprisionou a Igreja do Brasil até os tempos da República. Em razão disso, pouco ou nenhum envolvimento institucional em relação à situação dos negros escravizados. Entendiam que a vinda dos negros para o Brasil significava a oportunidade que eles estavam tendo para serem batizados e alcançarem a salvação. Entendia-se também que o cuidado dos escravos estava sob a responsabilidade dos seus senhores e a Igreja deveria cuidar dos pobres da sociedade, não negros.
Os tempos republicanos estiveram diante de inúmeros desafios, contudo a Igreja manteve-se como uma grande instituição presente de maneira hegemônica na sociedade brasileira. Os ventos da renovação pastoral na questão social começam com o pontificado do Papa João XXIII. Ele mesmo faz um grande apelo aos governos para que resolvam os graves e múltiplos problemas de caráter civil, social e econômico. Através da Encíclica Mater et Magistra o Papa faz uma convocação dos fieis para a grande tarefa no campo social, considerada pela CNBB como “oportuníssima para o caso especial do Brasil”.
Essa Encíclica deu um vigoroso impulso à linha de compromisso social da Igreja do Brasil com o engajamento em questões como a reforma agrária, a sindicalização rural e a educação de base no campo. A Igreja do Brasil vai tomando autoconsciência do seu papel na sociedade brasileira. Até hoje esse caminho é muito difícil.
Por fim, gostaria de mencionar as principais orientações da Cartilha das Pastorais Sociais publicada pela CNBB convocando a Igreja para ser presença testemunhal, ser alerta em forma de denúncia a respeito da existência dos diversos submundos na sociedade, e ser uma ação social na forma de serviço que multiplica as atividades de conscientização, organização e transformação que levam à conversão pessoal que leve às mudanças concretas da ordem social, econômica e política. A cartilha ainda recomenda uma articulação com as demais Igrejas cristãs e não cristãs, com as forças vivas da sociedade que contribuem para transformar a sociedade.
A Campanha Paz e Pão dessa forma busca integrar a solidariedade da doação de cestas básicas, a espiritualidade que alimenta a fé e a caridade, e a formação para ação de transformação das estruturas de injustiça que são causadoras da fome em nossa sociedade. Dessa forma, a Campanha convoca toda a sociedade e em especial os cristãos para a luta pelo direito, a defesa das políticas públicas e a saciedade do povo que está com fome.
Edebrande Cavalieri