O Papa Francisco realiza nessa semana a 40ª viagem apostólica rumo a dois países africanos – República Democrática do Congo e Sudão do Sul. Ao chegar em Kinshasa, capital do Congo, o Pontífice foi logo dizendo que estava trazendo “solidariedade, afeto e consolação de toda a Igreja”.
Esse anúncio se contrasta com as chegadas das potências europeias no século XIX na conquista do continente africano num movimento denominado de neocolonialismo. Semelhante ao que fora feito no século XVI no continente americano. Era preciso alimentar a indústria nascente com matérias primas, especialmente petróleo e minerais, e incrementar o mercado consumidores dos produtos industrializados.

Com o término da II Guerra Mundial, os países africanos passam a lutar para conquistar a liberdade, sua independência. Contudo, as divisas impostas pelas potências colonizadoras não respeitavam as divisões tradicionais de fronteiras entre os diversos povos. A libertação das potências europeias não significou a restauração da paz. Pelo contrário, internamente o continente africano vive envolto em guerrilhas, ou conflitos intermináveis entre as diversas tribos. Trata-se da herança maldita deixada pelos colonizadores.
O Papa Francisco é conhecedor dessa história macabra e propõe-se a realizar pontes que levem os povos africanos à paz. A República Democrática do Congo é o segundo maior país africano, o quarto em população, um dos mais ricos do mundo em recursos minerais motivo da conquista europeia e um dos mais pobres do mundo. Em termos de biodiversificação é o segundo país do mundo, ficando atrás apenas do Brasil. Sua independência da Bélgica não significou o fim das grandes disparidades entre riqueza e pobreza; parece que foram agravadas.
Em relação ao segundo país objeto dessa visita do Papa Francisco, o Sudão do Sul, que se tornou independente em 2011, pode-se dizer que ainda mais fortes são as consequências do processo colonizador europeu. Estamos diante de um dos países mais pobres do mundo, mesmo possuindo 75% das reservas de petróleo do antigo Sudão. Vive permanentemente em conflitos internos entre as várias tribos.
Ao deixar sua residência na Casa Santa Marta para ir ao aeroporto um cenário forte de migrantes e refugiados provenientes do Congo e do Sudão do Sul, com suas famílias que foram acolhidos pelo Centro Astalli dava uma pequena amostra do que o Papa irá encontrar nesses dois países. No percurso uma pequena parada diante do Monumento aos Caídos de Kindu que lembra os 13 aviadores mortos no Congo em missão de paz em 1961.
Diante dessas realidades massacradas por um “colonialismo econômico” o Papa Francisco em seu primeiro discurso não faz economia de palavras ou expressões e brada duramente: “Chega de sufocar a África”! “Tirem as mãos da África”! Trata-se de um país com grandes recursos naturais como floresta essenciais para energia limpa e muitos minerais como cobalto, cobre, lítio que ainda não foi explorado, coltan, cassiterita, e outros mais.
No Sudão o Papa está junto do arcebispo de Cantuária, Justin Welby da Igreja Anglicana e o moderador da Assembleia Geral da Igreja da Escócia, Reverendo Iain Greenshields da Igreja reformada ligada ao Presbiterianismo. Dessa forma, a viagem também se reveste de um “ecumenismo de testemunho”, que é tão essencial para a construção da paz.
A viagem assume feição de prática de proximidade com as Igrejas e comunidades locais, que são vivas e ativas, ao mesmo tempo que se luta por uma reconciliação interna que tem contribuído muito com o drama de milhões de refugiados, de guerrilha, de tensões étnicas e políticas. Os noticiários dificilmente retratam esse verdadeiro caldeirão bélico de dor e sofrimento.
No avião que levou a comitiva papal estava uma mulher, a única, Irmã Rita Mboshu-kong, missionária e teóloga que atua em projetos de desenvolvimento das mulheres do Congo. Ela descreve assim essa viagem: “Com o Santo Padre estou aprendendo qual é minha missão na Igreja como mulher, como consagrada, como africana”.
Estão acompanhando o Santo Padre 75 jornalistas do mundo todo. E no percurso, ao atravessar o território do deserto do Saara, o Papa solicita a todos que em silêncio “façamos uma oração por todas as pessoas que, procurando um pouco de bem-estar, um pouco de liberdade, tentam atravessar o Saara e não conseguem. Tantos sofredores que chegam ao Mediterrâneo depois de terem atravessado o deserto e são mantidos em campos de concentração e sofrem. Rezemos por todas essas pessoas”.
As feridas nesses dois países são muitas, sangram permanentemente, provocadas pelos interesses das potências mundiais sobre as reservas de petróleo e minerais, pelas guerras com países irmãos (vizinhos) pela posse dessas jazidas minerais, e pelos diversos tipos de ódios étnicos. Tudo isso massacra as pessoas.
O Núncio Apostólico Ettore Balestrero que acompanha o Papa na República Democrática do Congo diz que “há uma grande necessidade de que esse rio de ódio e violência entre num mar maior, como faz o rio Congo. O mar da justiça que deve ser feita, mas também o mar da reconciliação”.
Para a comunidade católica desses dois países, a visita do Papa Francisco representa um estímulo para evitar uma dicotomia entre a fé proclamada e a vida vivida. Essa dissociação entre fé e vida todos nós conhecemos muito bem. Também nós brasileiros nos dividimos pelo ódio e pela intolerância, e quase destruímos um povo, os Yanomami.
A fé vivida exige uma postura diferente diante da injustiça e das práticas de ódio. É preciso no mundo atual fazer curativos para que as feridas sejam cicatrizadas. O mundo precisa da cura concreta, da libertação concreta dos contextos de ódio e intolerância. A ausência de uma luta pela paz no dia a dia das pessoas pode ser o caminho de tantas dores e sofrimentos.
Os dois países africanos estão divididos por guerras fratricidas que afugentam as pessoas. No Congo, milícias militares tentam controlar o país através do Movimento M23. Já o Sudão do Sul atravessa uma grave crise humanitária. De uma população de 12 milhões de pessoas, a metade está em situação grave de fome e carece de assistência alimentar. Ao mesmo tempo, as comunidades são divididas, as pessoas buscam refúgio em lugares distantes e são em torno de quatro milhões; muitos engrossam as fileiras da migração com destino à Europa.
O veneno da ganância decorrente de um colonialismo de dois séculos tornou os diamantes desses dois países ensanguentados. E conclui o Papa Francisco: “Basta com este sufocar a África: não é uma mina para explorar, nem uma terra para saquear. Que a África seja protagonista do seu destino!”. Aqui não posso deixar de lembrar de nossa realidade brasileira vivida pelos Yanomami em que essas mesmas palavras se aplicam de maneira profética. Diz-nos o Papa: “Não podemos nos habituar ao sangue. Não se deixem manipular nem comprar por quem quer manter o país na violência para o explorar e fazer negócios vergonhosos”.
Por fim, seria muito bom se cada católico acompanhasse essas viagens do Papa Francisco. Em cada lugar, novos desafios e muitos deles são semelhantes aos nossos. Daqui torcemos por ele para que suporte as dores e o cansaço da idade e que faça ecoar seus gritos proféticos ao mundo carente de paz.
Edebrande Cavalieri