No último dia 19 de março o Papa Francisco publicou a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, fruto de um trabalho de nove anos, e que entrará em vigor no dia 5 de junho na solenidade de Pentecostes. Auxiliado por uma Comissão de Cardeais, ele encaminhou o processo de reforma que era anseio do colégio de cardeais que o elegeu. Antes de sua eleição ele dizia que o futuro Papa deveria ser “um homem que, a partir da contemplação de Jesus Cristo e da adoração a Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si rumo às periferias existenciais, que ajude a ser a mãe fecunda que vive da doce e confortadora alegria de evangelizar”.
Esse era um dos quatro pontos que o Cardeal Bergoglio falava aos cardeais das Congregações Gerais antes do conclave. Ainda ele enfatizava o zelo apostólico no sentido da evangelização, ajudando a Igreja a sair de si mesma para evangelizar superando a autorreferencialidade, pois a Evangelização não é obra de se dar glória uns aos outros vivendo em si, de si e para si mesma.
Em momentos anteriores, alguns Papas enfatizaram o trabalho da Cúria na Secretaria de Estado como o fez o Papa Paulo VI ou no reforço aos poderes legislativos e administrativos como fez o Papa João Paulo II. O Papa Francisco mostra que as ideias do teólogo Yves Congar, há cinquenta anos atrás, são o grande desafio para as reformas desejadas pelo colégio de Cardeais.
Nesse sentido ganha importância fundamental o primado da caridade e da pastoralidade na forma de evangelização, a preservação da comunhão em tempos tão difíceis como os atuais, a paciência e respeito pelos atrasos necessários e fundamentais no caminho da sinodalidade e a preservação dos princípios da tradição cristã que edificaram a Igreja nesses dois mil anos que lhe dá nova vitalidade para superar os diversos tipos de tradicionalismos tão presentes nos dias de hoje.
Em 250 artigos a Constituição Apostólica não apenas descreve e legisla sobre os modos de caminhar da Cúria Romana, mas sinaliza para toda a Igreja espalhada pelo mundo a fora como ela deve se organizar tanto nas estruturas como em sua vida pastoral. Assim, em seus primeiros artigos descreve de início o primeiro dever da Igreja de Cristo que é “pregai o Evangelho”. E logo sinaliza o primeiro desafio que é a conversão missionária da Igreja. A reforma da Cúria está inserida nesse contexto.
Trata-se de uma reforma em vista da missionariedade da Igreja. E em seu artigo 4º remete a reforma para o mistério de comunhão da Igreja. Em seguida, descreve como elementos fundamentais e concretos na comunhão o caminho sinodal e colegial. A constituição apostólica eleva esses dois princípios constitutivos – sinodalidade e colegialidade – como elementos obrigatórios no caminhar missionário da Igreja.
A Constituição Apostólica em si mesma expressa a Reforma da Cúria Romana, contudo seu sentido mais importante é o que ela aponta para toda a Igreja espalhada pelo mundo. A Cúria está organizada para atender o Papa e todos os Bispos do mundo inteiro. Trata-se de um corpo de serviço em sentido missionário e não apenas burocrático. Sendo assim, o caminho a ser trilhado está na experiência prática da sinodalidade e da corresponsabilidade pastoral.
De maneira particular, podemos dizer que as Cúrias diocesanas do mundo inteiro deverão caminhar de maneira sinodal com a Cúria Romana, a serviço da Igreja particular. Há uma implicação recíproca no empenho missionário entre todas as Igrejas particulares e a Igreja de Roma presidida pelo Papa. Dessa forma, a Constituição Apostólica ganha um sentido muito profundo e bonito, muito além da determinação legal.
Principais pontos que chamam a atenção e merecem destaque nessa Constituição Apostólica são:
- Unificação das nomenclaturas de Congregações e Pontifícios Conselhos para Dicastérios reduzidos a dezesseis coordenados por Prefeitos. Todos gozarão da mesma dignidade jurídica e poderão ser dirigidos por leigos.
- Temos como pano de fundo da Reforma descrita pela Constituição Apostólica uma Cúria a serviço do Papa e dos Bispos, em uma Igreja em saída missionária.
- Os leigos e leigas poderão assumir papéis de responsabilidade e de governo dentro da Igreja. O grande desafio será o rompimento da postura clericalista que prende determinadas funções em razão de alguma ordem hierárquica. Assim, se o prefeito e o secretário de um dicastério forem bispos, isso não se deriva de seu grau hierárquico. O ofício é o mesmo sendo exercido por um bispo, um padre ou um leigo. O poder de governo na Igreja não provém do sacramento da Ordem, mas da missão canônica.
- Há uma grande valorização dos mecanismos de proteção de menores, chaga de inúmeros sofrimentos. Está situado no Dicastério para a Doutrina da Fé tendo por objetivo “fornecer ao Romano Pontífice conselho e assessoria e propor as iniciativas mais adequadas para a proteção de menores e pessoas vulneráveis”.
- Aumento da autonomia das dioceses em vários setores, especialmente no que se refere à nulidade de matrimônios.
- É criado o novo Dicastério para o Serviço da Caridade (Esmola Apostólica) que cumpre a função de realizar a assistência e ajuda em qualquer lugar do mundo aos mais necessitados, especialmente das periferias geográficas. É “expressão especial de misericórdia e, a partir da opção pelos pobres, pelos vulneráveis e pelos excluídos, realiza o trabalho de assistência e ajuda em qualquer parte do mundo” (Art. 79).
- Criação de um grande Dicastério para a Evangelização, presidido pelo Papa, reunindo a Congregação para a Evangelização dos Povos e o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização.
- Muito significativo é o Dicastério para a Cultura e a Educação, reunindo o Pontifício Conselho para a Cultura e a Congregação para a Educação Católica.
- Extinção da prática da vitaliciedade em cargos ou funções. Oficiais clericais e membros dos Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica terão cinco anos de serviço na Cúria, prorrogado por mais cinco anos, com retorno imediato após esse período para suas dioceses. Afasta-se dessa forma o risco de se ter pessoas durante muito tempo em posições de governo desenvolvendo verdadeiros centros paralelos de poder. A rotatividade traz novas ideias, novas capacidades, novo dinamismo, nova abertura.
Por fim, podemos sinteticamente dizer que a nova Constituição Apostólica Praedicate Evangelium nos apresenta uma estrutura mais simples, enxuta, mais adequada aos tempos atuais, trazendo como referência central o princípio de todo cristão como um discípulo-missionário envolvendo leigos e leigas em papéis de governança e responsabilidade. Os grandes destaques ficam pelo foco na Evangelização, no Serviço da caridade, na proteção dos menores e vulneráveis, na cultura e educação. O Papa Francisco mostra com essa grande reforma sua fidelidade aos anseios do colégio cardinalício que o elegeu. Ao mesmo tempo aponta para toda a Igreja os rumos da Igreja para os próximos anos, fazendo reflorescer as esperanças e expectativas do Concílio Vaticano II.
Edebrande Cavalieri