Edebrande Cavalieri
Essa frase foi dita pelo Papa Francisco numa carta datada de 22 de outubro passado por ocasião dos 50º aniversário das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a União Europeia e o 40º aniversário da Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia. Logo ganhou grande repercussão nas redes sociais e muitos receberam com certo ar de preocupação. Talvez seja por causa do desconhecimento do que seja um Estado laico, ou até por força dos movimentos restauradores que ainda são fortes na Igreja e são portadores de grande número de críticas e agressões ao Pontífice nos meios de comunicação. Vamos então esclarecer o conceito de laicidade tão importante nos dias atuais e mal compreendido por muitas pessoas.
Ao se falar em Estado laico não estamos nos referindo à ateísmo, tão temido por muitos. A origem da palavra laicidade vem da língua grega – laos – e significa o povo em geral, o povo todo, sem exceção. Portanto, ao se falar em Estado laico estamos afirmando que nesse espaço deve caber o povo todo, todas as pessoas que habitam esse território. Estamos falando de um direito universal e não privilégio particular de uma Igreja ou uma religião, ou uma cultura. É dever do Estado dar o mesmo tratamento a todos os segmentos sociais e religiosos, ou não religiosos. Houve tempo na história que ciganos e judeus não cabiam em lugar nenhum. E hoje pessoas de outras raças, outras religiões parecem não caber no mundo atual.
Qualquer grupo social que tenha aspiração dominante de cunho histórico, racial, religioso, linguístico, estético ou econômico, no contexto de um Estado laico, esse grupo não pode impor de maneira autoritária ou autocrática suas orientações, suas normas, num espaço público que pertence a todos. É num Estado laico que se constitui uma sociedade livre, aberta e inclusiva, e por isso, esse Estado deve se pautar pela neutralidade. Não comporta nenhum tipo de intolerância religiosa, cultural ou ideológica.
No Brasil o Estado laico se originou com o Decreto 119-A de 1890 que determinou a separação entre o Estado e a Igreja Católica. Mesmo com a independência em 1822, a Constituição de 1824 determinava que a religião oficial fosse a Católica. As demais Igrejas e religiões só possuíam a liberdade para o culto privado, sem autorização para a construção de seus templos. Foram quatro séculos de uma estrutura de união entre Estado e Igreja sob a forma de Padroado, e se finda com o advento da República.
A estreita união entre Estado e Igreja trouxe consequências nocivas à pregação do Evangelho, pois os padres e bispos estavam a serviço do governo e não da pastoral. Quando alguns bispos resolveram alinhar-se ao Papa em Roma, eles foram perseguidos e presos, condenados a trabalhos forçados. Então a separação que acontece com o advento da República significou a liberdade para a Igreja, mesmo que isso custasse em termos financeiros.
No mundo, foi durante o Século XVIII, com o iluminismo, que se passou a defender com mais força a liberdade religiosa e a concepção de Estado e educação laicos. Rompia-se aí a união entre o Estado Absolutista com o Alto Clero da Igreja Católica. A Revolução Francesa em 1789 rompeu definitivamente a união da Igreja com o Estado. A história europeia é marcada por muitos conflitos entre as esferas política e religiosa. Quem não se lembra da Guerra dos Trinta Anos entre Católicos e Protestantes? Ou a Noite de São Bartolomeu quando centenas de pessoas morreram?
Enfim, a ideia de um Estado laico é fruto de um longo processo de lutas e conflitos, mistura de interesses, prejuízos para a fé cristã corrompida pelos interesses políticos, e desenvolvimento de tantas formas de intolerância religiosa e cultural. Então, quando o Papa Francisco expressa esse sonho sua base de argumentação não é de ordem ideológica, mas concreta, histórica. A Europa conhece muito bem os resultados dos conflitos herdados do passado e reconhece o valor de um distanciamento salutar entre as esferas política e religiosa.
Tem se desenvolvido no mundo político uma tendência de colocar a religião cristã como suporte de apoio para as ações políticas. A Direita cristã com certeza deseja uma Europa cristã, mas para o Papa a questão não é essa. Antes de tudo é preciso de um mundo que seja melhor em termos de convivência. Trata-se de um mundo sonhado em termos de paz, do bem comum, da acolhida. A Direita cristã instrumentaliza a religião conforme seus interesses de dominação, e não em vista de um mundo de paz. A Igreja Católica precisa tomar muito cuidado em não ser instrumentalizada nesse jogo político. O sonho do papa se torna então um objetivo de ação evangélica. A liberdade religiosa precisa ser preservada e não submissa à vontade política de governantes.
O Papa entende que as esferas religiosa e política não devem ser opostas ou em conflito, mas distintas. Chega a dizer que “Deus e Cesar devem ser distintos e não opostos”. Não se trata de ceder terreno ao ateísmo, mas construção de “uma terra aberta à transcendência, onde quem é crente seja livre para professar publicamente a fé e propor o próprio ponto de vista na sociedade”. Trata-se de construir um espaço plural, de convivência fraterna, de respeito mútuo, de liberdade. O Papa chega a falar em “uma família, uma comunidade”.
Então, o fato de se ter um país predominantemente cristão não se dá o direito de imposição de normas e leis cristãs para todo o conjunto da sociedade. Isso vale para qualquer religião. A fé não é algo a ser imposto. E tem mais um ponto que é importantíssimo: o Estado jamais poderá privilegiar de alguma forma uma Igreja em particular, ou religião. Todos estão sujeitos aos mesmos direitos. Assim, não tem sentido falar de se ter um “ministro terrivelmente evangélico” no STF. Também não tem sentido ajudar alguma instituição religiosa em detrimento das demais, pois o dinheiro administrado pelo Estado tem origem nos impostos cobrados da população, tem origem pública. A regra republicana sempre será através dos mecanismos de concorrência, licitação, e não troca de favores. Um Estado que favorece algum ente em particular será o mesmo que depois lhe passará a conta a ser paga, e geralmente será uma conta imoral.
Um Estado saudavelmente laico é garantidor da vida democrática. Isso é o que todas as Igrejas e Religiões deveriam exigir, pois assim terão direito à liberdade de professarem sua fé, na forma que convier. O enfraquecimento democrático tende sempre a posturas discriminatórias, violentas. Hoje vemos com tristeza o crescimento da violência de origem religiosa. Fanáticos e fundamentalistas estão fazendo correr muito sangue nas ruas, nas cidades.
O sonho de Francisco para a Europa é que seja um espaço em que cada nação conviva de forma amiga com as demais, onde a dignidade de cada pessoa seja respeitada, e que seja um lugar acolhedor e hospitaleiro determinado pela prática da caridade. Somente assim será possível romper as violências decorrentes do ódio, do terror, da indiferença e do egoísmo. Somente a caridade entre as nações poderá ser a semente da paz. O mundo de hoje carece da caridade, da ternura. O melhor caminho para Deus nesses tempos é sim a caridade, o amor.