Um olhar para a tragédia!

5 agosto, 2021

Todos nós estamos nos perguntando sobre evento de horror ocorrido na Praia da Costa, Vila Velha, quando um jovem de 22 anos que cursava medicina executou sua mãe e seu pai com uma faca e depois pôs fim a si mesmo. O que isso significa? Ele deixou um cenário muito rico em símbolos e expressões no apartamento onde morava com os pais. Trata-se de uma tragédia que não é resultado de um impulso momentâneo, decorrente de um surto psicótico, como estamos acostumados a ver. Tentaremos olhar esse fenômeno no crivo das ciências da religião. Na verdade, a compreensão e explicação desse fato demandam vários olhares e o que se registra aqui é apenas um olhar, sem pretensão de esgotar o fato.

Pelo que foi possível observar nas fotos divulgadas do apartamento, percebe-se que o autor demandou bastante tempo para descrever o que estava sentindo naqueles momentos e registrando tudo nas portas, nas paredes, nos armários, no chão. O cenário ali descrito está todo produzido a partir do texto bíblico do livro do Apocalipse, especialmente o capítulo 12, que descreve a luta de uma mulher grávida vestida de sol e um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres. O dragão queria arrancar o feto do ventre da mulher, porém esse menino foi arrebatado para junto de Deus e o dragão foi lançado sobre a terra, e a mulher fugiu para o deserto, lugar preparado por Deus, para se defender durante mil duzentos e sessenta dias.

O jovem se fixa no versículo 12 que diz: “celebrem-no, ó céus, e o que neles habitam, pois o diabo desceu até a terra e o mar. Ele está cheio de fúria, pois sabe que lhe resta pouco tempo”. O texto bíblico completa-se nesse capítulo dizendo que o diabo passou a guerrear contra o restante da descendência da mulher que se mantinha fiel a Deus. É o fim dos tempos! Não há tempo a perder.

A partir desse contexto, o jovem, filho daquele casal, passa a registrar diversos símbolos religiosos pelo apartamento todo, como a cruz invertida, o número 666, uma página rasgada da Bíblia com escrita em vermelho dizendo “Ele me obrigou”, “Ele é real”, cinzas sobre as páginas da Bíblia, garrafas de bebidas, etc.

A cruz invertida tem origem medieval e expressa algo demoníaco, contrariando a cruz que trouxe a salvação. A cruz invertida se assemelha a uma espada que serve para matar. Nesse sentido, o uso de arma branca para matar os pais e a si mesmo tem muita semelhança.

O número 666 é o mais conhecido entre nós. Representa a besta do Apocalipse e foi objeto de transferência significativa para o Imperador romano e até o próprio papa. As bebidas estão inseridas nos rituais de diversas religiões e o próprio cristianismo herda o vinho como elemento simbólico da última ceia de Jesus Cristo.

O que me chamou muito a atenção foi a página rasgada da Bíblia com escrita em vermelho “ele me obrigou”. Ora, se o capítulo 12 se refere ao dragão, não poderia ser outra coisa. E aqui a gente esbarra na pressa quando diz que o rapaz foi incorporado pelo demônio naquele momento. Penso que é muito prematuro afirmar que se trata de um endemoniamento. Prefiro entender esse momento como resultante de um processo bem forte de domínio religioso conduzido de maneira fragmentária, fundamentalista, sem acompanhamento pastoral. A incorporação de entidades demoníacas é muito defendida pelas posturas conservadoras. Isso não seria uma forma de se eximir da responsabilidade da formação de agentes demoníacos na sociedade? A sociedade atual precisa ser exorcizada de outras formas demoníacas que estão dominando o mundo.

A página rasgada da Bíblia também é muito significativa. Poderia ser algo casual, factual, mas prefiro entender na perspectiva simbólica. Assim como na morte de Jesus o véu do templo se rasgou, aqui também, nesse cenário, tudo está consumado. Essa atitude do jovem me leva a crer nessa direção. A força que o domina é tão grande, que a página bíblica de sua história se soltou da encadernação. As três vidas se soltaram da encadernação desse mundo.

Não temos como escapar desse ambiente de horror! Como olhar para esse cenário macabro?  É preciso evitar a resposta rápida e fácil. A descrição da perícia criminal é apenas um dos olhares. O juízo jurídico para o fato é outro olhar. E a instituição religiosa e as ciências da religião formam outros olhares. Não se pode desconsiderar os olhares da psicologia, da psicanálise e da psiquiatria. Portanto, estamos diante de um fenômeno bem complexo da cultura humana. Não cabe aqui nenhuma condenação ou suspeita em relação à estrutura familiar em que esse jovem nasceu e cresceu. Ao condenarmos o contexto familiar estamos nos isentando da corresponsabilidade diante desse fato. Logo que soube dessa ação eu me perguntei sobre o que se fez com a vida desse jovem. O que fizeram com ele nesses 22 anos? O que as escolas que ele frequentou, as ruas por onde passou, as Igrejas em que frequentou e rezou, as praias em que se divertiu, os amigos com quem conviveu, todos, o que fizemos com ele para que chegasse a esse ponto final?  Vamos parar de apontar o dedo achando que somos santos, escolhidos, salvos. Por que não suportamos a culpa, tendemos a culpar os outros.

Do ponto de vista das ciências da religião o que se apresenta de maneira muito forte é o domínio fundamentalista com o qual o jovem estava inserido, na cultura crescente que considera verdade apenas aquilo em que se acredita e se interpreta do texto bíblico. Daí uma interpretação meramente literal do texto bíblico, sem um exame hermenêutico acurado, sem ajuda das ciências bíblicas, mas apoiada apenas em sua livre interpretação. Estamos vendo crescer uma cultura que se basta na auto-interpretação dos textos sagrados. Isso é um grande risco para a sociedade. Essa perspectiva fundamentalista, ele absorveu da cultura em geral. Talvez tenha faltado ao pai, também pastor, sensibilidade para perceber em que caminhos seu filho estava trilhando. Muitas vezes acreditamos que jamais algo semelhante irá acontecer em nossa casa, com nossa família.

Penso que o caminho fundamentalista sempre será a morte e não a libertação. Podemos afirmar que se trata da maior pandemia espiritual dos tempos atuais. Sempre ‘fico com uma pulga atrás da orelha’ quando ouço alguém argumentar sobre determinado tema, geralmente de cunho moral, dizendo que “está na Bíblia”. Quem fala assim geralmente não está aberto ao diálogo. Já possui a verdade e a espada para matar o outro.

Os sinais de crescimento dessa cultura fundamentalista estão presentes na destruição de imagens sacras, na invasão de terreiros das religiões de matriz africana, no combate às devoções populares, na crença de que alguém pode ser considerado um messias, um enviado de Deus, um profeta, somente pelo fato de estar numa determinada posição de poder. A disseminação de ódio, de preconceito, de intolerância, de pregação de valores passados e tradicionalistas, bem mostram o quadro em que estamos inserindo nossos jovens e nossas crianças, tudo isso colabora para fortalecermos essa cultura de morte.

Particularmente não acredito que aquele jovem estivesse num conflito interno com pai e mãe. Pelo que se observa nos sinais deixados, parece-nos que sua decisão de levar os pais à morte bem como a si mesmo, estaria mais adequado a uma atitude de salvar a família do domínio do diabo. Ele acreditava que não haveria lugar para se proteger do maligno. Por isso, a obrigação de levar à morte, e assim, todos se juntarem a Deus como está escrito no texto bíblico.

Por fim, esse cenário de horror deve servir para uma profunda reflexão de cada um de nós; no convívio familiar, sempre atentos aos caminhos em que nossos filhos estão seguindo, e no convívio social para desenvolvermos uma cultura da tolerância, do estudo sério dos temas morais e religiosos sem uso político, e de uma cultura centrada no amor.

Edebrande Cavalieri

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