VOZ PROFÉTICA: IGREJA PERSEGUIDA

16 fevereiro, 2023

Foto: Vaticano News

Na oração do Angelus do dia 12 de fevereiro, o Papa Francisco desabafava dizendo que “as notícias que chegam da Nicarágua me magoaram muito e não posso deixar de lembrar com preocupação o Bispo de Matagalpa, José Álvarez Lagos, que amo muito, condenado a 26 anos de prisão. Também dois sacerdotes, Manuel Garcia e José Urbina, estão presos. Há cinco padres, um diácono e dois seminaristas condenados a dez anos de prisão e expulsos imediatamente do país com perda dos direitos de cidadania por toda a vida; também lideranças leigas que foram deportadas para os Estados Unidos. O que está acontecendo na Nicarágua?

O cardeal Jean-Claude Hollerich, que é o secretário do Sínodo dos Bispos, disse que se trata de uma “perseguição do Estado”. O Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres exigiu a imediata libertação de todas as pessoas detidas “arbitrariamente”, respeito aos direitos de “todos os cidadãos” e, principalmente, o direito de reunião, da liberdade de associação e religião.

A ditadura de Daniel Ortega chega a um ponto que está gerando muito medo entre os padres católicos do país, pois os seus defensores querem uma Igreja silenciosa, alinhada ao poder. Os próprios padres temem falar para não prejudicar os bispos de suas dioceses. A ditadura de Ortega ataca a liberdade religiosa. Ortega confessa que “nunca teve respeito pelos bispos”. Acusa a Igreja de ter acobertado a ditadura de Somoza e de tê-lo enterrado com as honras de príncipe da Igreja.

Ao mesmo tempo, vemos nesse país a deterioração da vida democrática, pois a Ditadura de Ortega já se prolonga pelo quinto mandato, e quarto consecutivo, tendo sua esposa como vice-presidente. As reações a esse governo vêm de todos os lados do mundo, e a Corte de Direitos Humanos (IDH) tem declarado repetidamente que a Nicarágua “desrespeita permanentemente os Direitos Humanos”. Os opositores ao regime em números elevados enchem as prisões. Em abril de 2018, a Comissão interamericana de Direitos Humanos denunciava a morte de 25 pessoas, com dezenas de feridos, violência contra jornalistas e um plano de censura fechando canais de televisão que fazia cobertura dos protestos populares.

Ao mesmo tempo há forte “repressão migratória”, violenta, desde 2018, proibindo nicaraguenses de saírem do país, muitos com passaportes apreendidos no próprio aeroporto do país. Trabalhadores do Estado, inclusive professores de universidades públicas, devem solicitar permissão para deixar o país explicando as razões pelas quais vão sair, para onde irão e por quanto tempo pretendem ficar por lá. Sem autorização, ninguém sai.

Até agosto do ano passado, o governo nicaraguense havia fechado sete estações de rádio da Igreja Católica, e perseguindo o Bispo José Rolando Álvarez, agora condenado e preso, acusado de incitar atos violentos. A estratégia de Daniel Ortega é silenciar os críticos de seu governo. Assim ocorreu em 2018, ao invadir a sede do jornal Confidencial dirigido pelo jornalista Carlos Fernando Chamorro. Em 2021, as autoridades do governo prenderam sete potenciais candidatos presidenciais para as eleições de novembro daquele ano, vencida por Daniel Ortega.

Os protestos contra o atual governo cresceram a partir da reforma da previdência social de 2018 liderados por empresários, lideranças católicas e outros setores. De imediato, o governo agiu reprimindo com as forças de segurança e milícias civis aliadas. Nesses protestos foram mortas 355 pessoas, mais de duas mil ficaram feridas e 1600 foram presas.

É interessante vermos um pouco o caminho que a Igreja católica da Nicarágua tem assumido ao longo das últimas décadas. De 1930 a 1970 esteve ao lado da ditadura dos Somozas. Em decorrência dos abusos realizados por essa ditadura, passou a apoiar o movimento sandinista. E já sob o governo de Daniel Ortega, a Igreja católica através de seus líderes, deu apoio à elite conservadora do país. No momento em que eclodiram os protestos, Ortega pediu que a Igreja fosse a mediadora das negociações de paz; foram um grande fracasso. Aos poucos, a Igreja foi tomando consciência da gravidade do caminho conduzido pelo atual presidente.

Com o passar dos tempos, a Igreja nicaraguense foi se aproximando das manifestações sociais e apoiando suas causas. A catedral de Manágua serviu em 2018 como abrigo para abrigo dos estudantes, local de coleta de alimentos e dinheiro para apoio em suas manifestações e lutas. O cardeal Leopoldo Brenes e o bispo-auxiliar de Manágua, Sílvio Báez, foram duros ao rejeitar a violência em todas as suas formas, considerando as manifestações plenamente justificadas.

Em 2019, a pedido do Vaticano, o Bispo Sílvio Báez deixou o país; fato esse festejado pelos sandinistas e lamentado pela oposição ao regime. Daniel Ortega chamou os bispos de “terroristas”. Até mesmo o núncio apostólico de Manágua, Dom Waldemar Stanislau Sommertag que atuava na libertação dos opositores ao governo que estavam presos foi forçado pelo governo Ortega a deixar o país. O Vaticano chamou esse fato de “decisão injustificada”.

A prisão e condenação do Bispo José Alvarez é justificada pelo governo como o responsável por “organizar grupos violentos”. Na verdade, Dom Álvarez tem lutado para que haja uma reforma eleitoral que leve o país a “alcançar efetivamente a democratização”. Além disse, exige a libertação de 190 pessoas consideradas presos políticos. A luta pela democracia é o motivo ou causa principal do empenho da Igreja da Nicarágua nesse momento.

Desde 2018 a situação vai piorando a cada dia. Não apenas há perseguições a autoridades eclesiásticas, como templos sendo invadidos e profanados, grupo de apoiadores do presidente invadem templos durante as celebrações para agredir as pessoas, os bispos e o próprio núncio apostólico. Há padres e bispos que foram feridos nesses ataques.

O coletivo que está organizando as manifestações contra a política de Daniel Ortega assim se define: “Somos formados por um grupo de organizações e cidadãos diversos e heterogêneos, entre eles estudantes, integrantes do setor empresarial, movimento campesino, ativistas dos direitos humanos e cidadão de região autônoma […] A aliança que dá voz as demandas de milhares de nicaraguenses que clamam por justiça e democracia com objetivo de revisar o sistema político desde a raiz para lograr uma autêntica democracia”.

O caminho histórico da Igreja, muitas vezes em decorrência de seu lado humano, tropeçou em erros de alianças e apoios que custaram muito caro à própria Igreja. Na Nicarágua não é diferente. Houve e há setores que apoiam o atual governo e, muitas vezes, torna-se difícil o discernimento para o caminhar dos cristãos. O cardeal Pietro Parolin nos diz que “para responder ao mal-estar dos populismos é necessária a boa política”. A Igreja não pode abster-se de assumir uma posição profética que é também uma posição política. O grito dos profetas sempre foi contra as estruturas que massacravam o povo, que impunham o jugo da injustiça.

Na Carta Encíclica Fratelli Tutti o Papa Francisco defende “uma conversão à boa política” que é constituída pela “escuta, diálogo, consenso, convivência e cuidado com o bem comum”. Em razão desses princípios, o Pontífice evita tecer grandes comentários sobre a situação atual, esperando que a diplomacia seja suficiente para a garantia da paz. Ele nos diz que sempre acredita na força do diálogo aberto e sincero para encontrar as bases de uma convivência respeitosa e pacífica.

Para a Igreja nicaraguense trata-se de uma situação opressiva por parte do governo de Ortega, onde as razões do direito que deveriam guiar as ações políticas são sistematicamente contornadas. O Bispo Alvarez confessa que na Nicarágua há uma Igreja coesa e solidária, nem desamparada nem inerte, nem esmagada pela situação de perseguição. Sente a presença da Santa Sé e de modo especial do Papa Francisco bem pertinho com posturas adequadas às circunstâncias do momento.

Quatro países da América Latina – Cuba, Colômbia, Venezuela e Nicarágua – estão entre os cinquenta países que mais perseguem cristãos no mundo todo. A corrupção e a ineficácia dos governos vão deteriorando as condições concretas de vida desses países. Dessa realidade surgem grupos criminosos e lideres étnicos, formando redes criminosas e dominando amplos territórios. O quadro é muito preocupante.
Por fim, a tomada de posição mais firme da Igreja frente à realidade optando preferencialmente pelas populações empobrecidas, acaba levando à morte muitas lideranças religiosas e leigas formando uma constelação de mártires brilhando sobre a terra. Também morrem milhares de pessoas assassinadas em decorrência da repressão. Desse momento duro vivido pela Igreja da Nicarágua deve crescer uma memória martirial que fortalece e reforça a identidade e coesão do povo de Deus, animando-o nas crises, e a Igreja Latina assim torna-se herdeira da Igreja cristã primitiva, perseguida e firme até a morte. A memória desses mártires deverá sempre nos chamar a atenção para as causas que eles empenharam na vida e defenderam.

Edebrande Cavalieri

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